sábado, 3 de dezembro de 2022

Museu Verdades de Faria

            Não há museu dominante na minha memória. A palavra traz de imediato e de supetão uma caterva deles e há que dizer-lhes: «Esperem aí um bocadinho para eu arrumar ideias!».

            O primeiro, sem dúvida, o Museu-Biblioteca dos Condes de Castro Guimarães, o da minha juventude. Não só pelo ar de casa senhorial que sonhadoramente se desprendia, romântico, daquela fortaleza, ao pé daquela língua de mar plantada, mas porque sabia bem, pelas tardes frias, sentir o calor fagueiro daquela lareira na sala de leitura, onde se estudava pelos livros que só ali se podiam encontrar. Guardo ainda, religiosamente, os dois cartões de leitor: o da biblioteca fixa e o da móvel. Mensalmente a carrinha parava ao pé de minha casa, num lugarejo dos arredores da vila, e ali me deixava Júlio Verne, Emílio Salgari. Júlio Dinis, «As Vinhas da Ira», «Olhai os Lírios do Campo», as grandes biografias…
            O segundo, o do Mar, também de Cascais, por me haver empenhado a fundo na sua criação. Se se proclamava ser «terra de reis e pescadores», os reis haviam partido, mas a tradição piscatória urgia preservá-la! Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora de Porto Seguro –integravam os seus templos a paisagem histórica da vila.
            O terceiro, o da minha terra natal: o Museu do Traje de S. Brás de Alportel. Só bastante mais tarde dele tive conhecimento; hoje, não me canso de o admirar, pela distinta e pioneira concepção museológica de que o seu responsável, Emanuel Sancho, o impregnou: arquivo das memórias locais, sempre pronto a acolhê-las; ponto de encontro da comunidade local, a indígena e a estrangeira que escolheu S . Brás para viver. Ambas sentem o museu como seu, o ponto de encontro privilegiado!
Importa, porém, escolher um para a visita de hoje. Escolho o Museu Verdades de Faria. Na verdade, visitá-lo proporciona sempre uma viagem. Fugimos ao corrupio quotidiano e de pronto nos embrenharmos noutra dimensão.
Sim, surpreende-nos o seu ar apalaçado, altaneiro, Torre de S. Patrício lhe chamaram os primeiros proprietários. Contudo, situado numa encosta quase no topo norte da Av. Saboia, em pleno coração do ridente Monte Estoril, romanticamente integrado, também ele, em parque de frondosas e mui variadas árvores, o edifício convida mesmo àquele sossego de saborear a vida, na vontade de que os minutos escorram lentos, no embalo do gorjeio de pássaros e de fontes, na concha abrigada dos recantos de que o bom gosto de princípios do século XX sabia entretecer a vida.
Nasceu a casa do pensamento artístico de Jorge O’Neil, o mesmo arquitecto que gizara a dos Condes de Castro Guimarães. Mas, enquanto ali é o mar que importa, aqui, arejada pela brisa da serra, do alto da torre a vista se espraia pelas lonjuras do estuário do Tejo até ao dorso da Serra da Arrábida, a morrer no Cabo Espichel…
Por disposição testamentária de Henrique Mantero Belard, aceite na sessão de 24 de fevereiro de 1975 da Comissão Administrativa do Município de Cascais, o imóvel passou a ser municipal, na condição de ali se fazer casa-museu com o nome da esposa do doador, Verdades de Faria. O parque anexo, de 5000 metros quadrados, transformado em jardim, seria para mui serena fruição por parte da população.
Uma casa que vale por si!
            A casa vale por si. Azulejos de rodapé, com as habituais cenas do quotidiano em praticamente todas as salsa; aquela singular casa-de-banho em que, mesmo entrando, só a custo se descobre onde está a sanita; os azulejos distorcidos a acompanharem quem sobe a escadaria; o bucólico e fresco pátio interior, com sua fonte a meio, num convite à leitura e à meditação…
Optou-se por aí se erguer o Museu da Música Portuguesa, sobretudo porque a Câmara adquiriu o espólio de Michel Giacometti, o conhecido etnomusicólogo que escolhera Cascais para viver, espólio que Fernando Lopes Graça não hesitou em enriquecer cedendo o seu. Dois legados ímpares!
Não admira, pois, que paulatinamente duas linhas de actuação se hajam imposto: centro de investigação de Musicologia e, por outro lado, os saraus musicais, os concertos, os encontros musicais passaram a fazer parte da sua imparável programação.
Assim, às melodias que, ao longo dos séculos, homens sábios souberam compor para nosso deleite e deles, unem-se agora, com frequência, as que às aves do parque o Criador maravilhosamente soube ensinar.
Não enjeito (longe de mim!) os outros três museus; compreende-se, no entanto, que a visita pausada ao Verdades de Faria – para uma exposição, para um concerto ou, até, para saborear os acepipes de um ‘pôr-do-sol’ a rematar encontro científico ali realizado – seja de me encher as medidas!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado na revista Zeus (V. N. Gaia), Ago/Set 2022, p. 70-71. Na rubrica «Museus da minha memória».

 
Sanfona - que foi peça do mês

Uma das muitas iniciativas do museu


1 comentário:

  1. Frequentadora, em tempos, dos museus da região e nacionais, sinto que é sempre melhor descobri-los pelas palavras experientes de um especialista.
    Neste caso o Verdades de Faria, com a importância do nome de uma mulher na sua génese, e pelas palavras de um historiador-arqueólogo-epigrafista, que em todos os pormenores descobre Poesia.
    Foi a Poesia que encontrei neste texto, que me fará revisitar este Museu aqui tão perto, lembrando a Música, compositores e musicólogos que muito a honraram em vida e que nos enriquecem as memórias.
    Maria Helena Ventura

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