sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Pingam as goteiras…

            Pingam as goteiras no telheiro. Completamente descompassadas. Não sei bem se já não chove e é o resto d’água acareado nas telhas ou se continua a chover. O som das pingas continua descompassado, intermitente, não é de aguaceiro nem de chuva forte.

Em tempo de guerra como é o nosso, embora dela pensemos estar longe, o matraquear das gotas lembra matraquear de metralhadoras.
É bom estar no sossego do lar, sem necessidade de sair para compras, para ir buscar comida, para nada. Bom ter um lar. Abrigo.
Ainda ontem à noite passei por um. Tinha um chapéu de chuva aberto e aconchegava-se à parede, embrulhado em manta coçada. Todas as noites que por ali passo, eu vejo o vulto. Sem-abrigo? Guarda da obra em frente? Por que carga d’água estará ali tantas noites? Ainda não tive coragem de parar e perguntar-lhe.
Tenho os pés quentes nas pantufas que há dias me ofereceram. Sinto a macieza da carpete que imita tapete persa. Bruxuleia ali, bem azulinha, a minichama do aquecedor, alaranjando a grelha em brasa. Hirtas, em duas esquinas do pilar da sala, duas longas esculturas de madeira são gatos estilizados. Hieráticos. Um tem olhos verdes e bigodes sobre o focinho rosado. Não sei que me quer dizer. ¿Que eu tenha paciência? ¿Que encare a vida com serenidade? Talvez.
            O Spike veio pedir-me para ir à rua. Disse-lhe: «Está a chover, o dono já vai contigo!». Deitou-se, tranquilo, a meus pés.
Creio que os pingos-metralhadora já se calaram. E vou espreitar a noite com o Spike. Creio que estamos em quarto crescente, mas as nuvens não me deixarão ver a lua. E tenho de olhar bem para o chão, não vá encharcar os sapatos nas poças.
Respira tranquilo o Spike. Sabe esperar, de cabeça apoiada no chão. Levantou-se agora, olha para mim: «Vamos?». Vamos.

                                                                                               José d’Encarnação

        Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 835, 15-12-2022, p. 11.



3 comentários:

  1. Alguém me disse há dias que eu devia ter um cão...Seria uma boa razão para sair e fazer exercício....Petulância.
    Não podemos confessar a ninguém que temos preguiça de sair do aconchego do lar. Logo nos dão conselhos.
    O Spike teve a compensação por saber esperar. Há animais de quatro patas que, melhor do que os humanos, sabem aguardar a generosidade de quem trata deles.
    Acho que o gato-escultura não precisa recomendar ao dono desta casa serenidade, paciência (a não ser que saiba segredos que só ambos conhecem) porque pelo texto vemos que tanto ele, como o seu cão, têm a paciência de esperar o momento certo, com serenidade.
    Gostei muito do texto, mas tenho a sensação de me ter escapado alguma coisa. Por isso voltarei amanhã, para uma releitura...
    Muto grata.

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    1. Bem hajas, Lena, por este e pelos vários comentários que tanto enriquecem e sublimam a singeleza dos meus escritos.

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  2. Um belíssimo texto, retrato da realidade que o mundo vive e da nossa, privilegiada.
    Que bom seria se as vi goteiras deixassem cair Paz,Amor,Solidariedade para que o Homem se encontrasse...

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