Pingam as goteiras
no telheiro. Completamente descompassadas. Não sei bem se já não chove e é o
resto d’água acareado nas telhas ou se continua a chover. O som das pingas continua
descompassado, intermitente, não é de aguaceiro nem de chuva forte.
Em tempo de guerra
como é o nosso, embora dela pensemos estar longe, o matraquear das gotas lembra
matraquear de metralhadoras.
É bom estar no
sossego do lar, sem necessidade de sair para compras, para ir buscar comida,
para nada. Bom ter um lar. Abrigo.
Ainda ontem à
noite passei por um. Tinha um chapéu de chuva aberto e aconchegava-se à parede,
embrulhado em manta coçada. Todas as noites que por ali passo, eu vejo o vulto.
Sem-abrigo? Guarda da obra em frente? Por que carga d’água estará ali tantas
noites? Ainda não tive coragem de parar e perguntar-lhe.
Tenho os pés quentes
nas pantufas que há dias me ofereceram. Sinto a macieza da carpete que imita
tapete persa. Bruxuleia ali, bem azulinha, a minichama do aquecedor, alaranjando
a grelha em brasa. Hirtas, em duas esquinas do pilar da sala, duas longas esculturas
de madeira são gatos estilizados. Hieráticos. Um tem olhos verdes e bigodes
sobre o focinho rosado. Não sei que me quer dizer. ¿Que eu tenha paciência? ¿Que
encare a vida com serenidade? Talvez.
O
Spike veio pedir-me para ir à rua. Disse-lhe: «Está a chover, o dono já vai contigo!».
Deitou-se, tranquilo, a meus pés.
Creio que os
pingos-metralhadora já se calaram. E vou espreitar a noite com o Spike. Creio
que estamos em quarto crescente, mas as nuvens não me deixarão ver a lua. E
tenho de olhar bem para o chão, não vá encharcar os sapatos nas poças.
Respira tranquilo
o Spike. Sabe esperar, de cabeça apoiada no chão. Levantou-se agora, olha para
mim: «Vamos?». Vamos.
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 835, 15-12-2022, p. 11.
Alguém me disse há dias que eu devia ter um cão...Seria uma boa razão para sair e fazer exercício....Petulância.
ResponderEliminarNão podemos confessar a ninguém que temos preguiça de sair do aconchego do lar. Logo nos dão conselhos.
O Spike teve a compensação por saber esperar. Há animais de quatro patas que, melhor do que os humanos, sabem aguardar a generosidade de quem trata deles.
Acho que o gato-escultura não precisa recomendar ao dono desta casa serenidade, paciência (a não ser que saiba segredos que só ambos conhecem) porque pelo texto vemos que tanto ele, como o seu cão, têm a paciência de esperar o momento certo, com serenidade.
Gostei muito do texto, mas tenho a sensação de me ter escapado alguma coisa. Por isso voltarei amanhã, para uma releitura...
Muto grata.
Bem hajas, Lena, por este e pelos vários comentários que tanto enriquecem e sublimam a singeleza dos meus escritos.
EliminarUm belíssimo texto, retrato da realidade que o mundo vive e da nossa, privilegiada.
ResponderEliminarQue bom seria se as vi goteiras deixassem cair Paz,Amor,Solidariedade para que o Homem se encontrasse...