Explico-me. É que, de manhã, ao calçar as meias (ou peúgos ou peúgas, como também se diz), me ocorre amiúde e saudoso o tempo em que minha avó Bia dos Santos me pedia para, os dois bracinhos estendidos para a frente, eu segurar a meada de linha que ela comprara, a fim de, balançando-os ora para cima ora para baixo, ela conseguir, em movimentos de vaivém, fazer o novelo bem redondinho. De vez em quando, a linha lá se empeçava e era preciso dar duas ou três voltas na meada para tudo voltar ao normal.
Sentia-me útil, sentia o calor da minha avó – e era um momento doce e enlevado. Ao serão, por entre histórias, a que não faltavam lobisomens e encruzilhadas, lá eu via as duas mãozinhas enrugadas, mas lestas, com as duas luzidias agulhas de barbela, enfia em baixo, passa por cima, uma paragem de vez em quando para medir e ver se já estava na altura de fazer o calcanhar... E eu admirava. Mais tarde, iria calçar umas dessas meias feitas por minha avó!...
Decerto se compreende já a razão de ser da crónica: para recordar palavras concretas; para juntar a etnografia à tradição; para evocar bem saudáveis momentos de avós e netos, em que tanto se aprendia!...
Aliás, assim de repente, ¿quantas das nossas crianças, hoje, compreendem cabalmente o significado e a ternura e a sabedoria que se desprendem destas quadras populares?
Nossa Senhora faz meia
A linha é feita de luz
O novelo é lua cheia
E as meias são pra Jesus
Uma meia meia feita
Outra meia por fazer
Diga lá, minha menina:
Quantas meias vêm a ser?
¿E distinguir as diferentes dificuldades que envolvem fazer o pé da meia e arranjar um bom pé-de-meia?
Tem S. Brás mui louvável Centro de Artes e Ofícios. ¿Que tal a ideia de organizar um concurso ou serões de fazer meia, com avós e netos? ¿E professores de Língua Portuguesa a ensinarem essas palavrinhas tão nossas?
José d’Encarnação
Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 313, 20-11-2022, p. 17.
"E distinguir as diferentes dificuldades que envolvem fazer o pé da meia e arranjar um bom pé-de-meia"? Destaco este excerto do texto porque eu sei das dificuldades extremas...Fazer meias nunca consegui (também não tentei com carinho, péssima nesses trabalhos). Quanto ao resto também não me esforcei. Agora é aguentar...Mas tudo isto vem a propósito deste oportuno texto: hoje começa o Inverno, as meias fazem falta, e estas iniciativas das autarquias apoiarem Centros de Artes e Ofícios com saberes antigos, tem uma dupla e meritória função: os mais novos aprendem e os jovens de há MUITO tempo, partilham saberes, sentindo-se úteis. Como não havia o menino de sua avó de recordar a ajuda a enrolar o novelo? Muito grata pelo texto, José d´Encarnação.
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