quarta-feira, 31 de julho de 2013

Doidos e revolucionários - entendam-se!

            Torna-se extremamente difícil escrever sobre a peça em cena no Teatro Municipal Mirita Casimiro desde o passado dia 24 e até 13 de Agosto. Sinto-me, na verdade, ignorante, por desconhecer os meandros da arte teatral, da história do Teatro e de todas as ciências que lhes são afins, pois que de verdadeiras «ciências» se trata. Razão tem, por isso, Miguel Graça, o responsável pela versão e pela dramaturgia, quando, no final do seu texto de apresentação no «programa», proclama: «Mestre Avilez». Eu diria mais: «Doutor Carlos Avilez!», tamanha é a sabedoria bem patente na encenação deste portentoso espectáculo, um sonho que, alfim, o «Mestre» ousou concretizar, superando longas hesitações de anos.
            O meu voto, desde logo, é que se consiga proceder à gravação do espectáculo, uma vez que se trata da Prova de Aptidão Profissional dos alunos da Escola Profissional de Teatro e não é possível tê-lo em cena muito tempo.
            Importaria falar dos figurinos (sempre a mão hábil e já imprescindível de Fernando Alvarez, idealizador também da cenografia); do guarda-roupa; da música original de R. C. Peaslee; da ajustada iluminação; do cenário despidamente dramático. Impossível referir todos os pormenores significativos, que farão escola, não tenho dúvida. Era preciso, aliás, ver a peça bastantes vezes, com olhar sempre muito atento. Cinjo-me, pois, a alguns aspectos que se me afiguram relevantes.
 
«Acordem!»
            Em primeiro lugar, a perfeita actualidade de um texto escrito em 1964 – actualidade para o mundo e não apenas para o espaço político português. Dá que pensar, obriga a pensar e termina mesmo com um dos actores à boca de cena, dirigindo-se ao público nesse sentido, como que a proclamar: «Acordem!».
            Em segundo lugar, cativou-me o que eu chamaria de simbiose (vou escrever uma asneira, mas que os peritos me desculpem, porque reajo como público e não como especialista em Teatro, que o não sou, claramente), a simbiose entre a tradição do teatro clássico e o modelo da revista à portuguesa. Explico-me: a figura do arauto (eu vi a estreia e andou muito bem Jani Zhao) pode personificar o arauto das festas medievais, sim, mas também podemos ver nele o compère (passe o galicismo!), elo de ligação a guiar o espectador na compreensão melhor do que ali vai passar-se.
            Por outro lado, ainda nessa mesma linha de pensamento, há os quatro ‘palhaços’, que não são palhaços mas se vestem como tais e incarnam, a meu ver, o que, na tragédia grega, era o coro (aliás, amiúde se expressam em música), a comentar jocosamente o que se viu e a própria trama que a seus olhos se desenrola. Eles são palhaços e a escolha dessa roupagem não foi, seguramente, nada inocente, como facilmente se compreende: a incarnação concreta da frase «ridendo castigat mores», “é a rir que se castigam os costumes”. Como quem diria, em linguagem comum: «Vamos lá, cambada, rir desta gente toda, a ver se aprendem alguma coisa! É difícil, mas nada custa tentar!»…

«Ou vocês se portam bem…»
            Em terceiro lugar… Bem, aqui há que explicar minimamente o que o autor, o alemão Peter Weiss (1916-1982) engendrou, e não é simples, pois logo o título – embora a peça seja mais conhecida como Marat/Sade – se revela estranho: Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat Representado pelo Grupo Teatral do Hospício de Charenton sob a Direção do Marquês de Sade.
            Temos, pois, uma peça de teatro que o Marquês de Sade escreveu acerca do revolucionário Marat, um dos ícones da Revolução Francesa, com vista a ser representada, em jeito de terapia de grupo, pelos loucos do hospício onde ele próprio estava internado. Marat foi assassinado a 13 de Julho de 1793, Sade escreveu a peça em 1808 e Peter Weiss em 1964, e nós assistimos a ela agora, e, ao que parece, tanto Sade como o próprio Peter Weiss (será ele?) também estão em cena ali, espectadores vigilantes, e não é raro que as falas dos actores excedam o que eles escreveram. Várias vezes a sequência é, pois, interrompida por um ou por outro, como quem diz: «Ou vocês se portam bem e seguem o texto ou a peça acaba já aqui!». Estratagema que resulta muito bem. É o actor a empolgar-se, a fugir expressamente da grilheta do guião, porque lhe apetece, raivoso, dar conta de uma realidade vivida, concreta, em transgressão. A admoestação, neste caso, serve para reforçar ainda mais a atrocidade do que se está a viver, com profundas implicações político-sociais e ideológicas. E o espantalho da guilhotina lá está sempre, qual pelourinho medieval. Os autores sentem que os actores acabam por lhes querer escapar – Pinóquio a ganhar vida saído das mãos de Gepeto… E não é que, de quando em vez, enclausurado como está, também o espectador sente ganas de gritar, de reagir aos palhaços que, subservientes e até cantando (como o tal coro das tragédias gregas), o vêm desafiar junto às grades?...
            É, sempre, um mar de gente em palco: um total de 90, disseram-me! A maioria, doidos, cheios de tiques (eles ou nós?...), a documentarem o corajoso e inaudito e louco (também ele!) trabalho de direcção de actores de Carlos Avilez, bem secundado, nessa questão das manifestações patológicas, por Cristina Rego e, na coreografia, por Natasha Tchitcherova. E, não sendo um musical nem uma opereta, recorre, porém, com frequência à música, a dar toque gracioso ao conjunto.
            Escusado será dizer que, para Prova de Aptidão Profissional, é desafio enorme para o encenador e para os muito jovens actores dos três elencos, assim sujeitos a um pisar de palco em ritmo quase alucinante, e despertos, desta forma, para o desempenho dos mais diversos papéis.
            Saímos do Mirita Casimiro com os gritos da Revolução a soarem bem estridentes nos tímpanos do nosso quotidiano louco!...

Publicado em Cyberjornal, 31-07-2013 [com 61 imagens do espectáculo, das quais, com a devida vénia, aqui  se reproduzem três]:

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