«Notas
de viagens» sugeriria, como título, apontamento de etnógrafo, impressões de
viajante mui deslumbrado com as aparências do típico, obediente ao que ao guia
lhe apetecesse mostrar: Torre Eiffel, pirâmides de Gisé, oloroso casbá de
Marraquexe, o Nilo, o Douro e o Sena… Não há guia aqui, porém, a não ser a
águia de olhar bem perspicaz, Homem inteiro de visão bem funda, Irmão que sente
e que pensa!
«Ritmos
e mitos».
O
ritmo é o que cada qual lhe quiser dar – que o Poeta é livre e quer libertar
também. Preferirá, sem dúvida, um caminhar sereno, a saborear palavras, a degustar
sentimentos…
Os
mitos são os de sempre: por labirintos de Creta nos levam; de Cérbero, o cão,
há que libertar-nos; por Fénix renascida suspiramos…
Viagem
esta pelo mundo e pelo tempo, inebriada de pinceladas prenhes de uma Cultura
sabiamente adquirida e mui oportunamente revisitada. Eterno convite!
Que
mais se aprecia? Não é nada fácil a escolha. «Tudo!» – resposta certa seria;
mas ninguém acreditava, ainda que seja essa a verdade. Há, todavia, sementeira
plena de reflexões maduras, com paragens onde a palavra é mais espada e mais célere,
por isso, o sangue depressa ao coração
aflui, num rompante.
Tudo,
afinal, é convocado por Fernando Miguel Bernardes. Os homens de antanho, sim;
os homens de agora também. Filósofos, operários, crianças, o colibri, a codorniz,
a andorinha, o melro, urubus (!), a flor do alecrim, a poderosa formiga que
ousou passear-se por sobre a mesa em Havana, a banda e o coreto, moinhos de D.
Quixote, o diamante e as minas, o Nero antigo das Twin Towers de agora…
Tudo!... E da mais ínfima partícula jorram a inspiração
e a voz. Sim, que versos destes são para ler com os olhos mas muito mais apetece
gritá-los, atirá-los ao vento madruga da
afora, gota feliz na pétala rubra da rosa! «Nasceu fulva a manhã nos teus
cabelos…». Em bailia: «Abril bonito / Abril das rosas / pares no jardim /
tardes formosas!...». «Passa lá um rio / Bate lá o mar»!
A cereja: quem a tirou do cesto é dela
merecedor? Assim venha por bem quem a semente quis regar na frescura do suor.
Horror de mãos ocultas a colher doutrem as frutas!...
A
perdiz: mil tombaram na caçada! «Onde o frumento não nasce, a perdiz não pasce»
– e o clangor ecoa «pela seca vasta planura alentejana». Tem de ecoar!
Lapidar
a legenda «para um portal no Bairro Alto»: «O mar ao luar tem cabelos de prata…
Saudade doce mal… com absinto se trata!». Vês? Não há jeito assim – que não respiras
a dizer e vai tudo de carreirinha! E não é!... São oito os versos e nem quadra
querem ser. Ora vê:
O mar
ao luar
tem cabelos
de prata…
Saudade
doce mal…
com absinto
se trata!
Tem
outro condão, está claro. E desta sorte, com vagar, se vai sorvendo o absinto –
que isso é a saudade nossa, lenta, doce e amarga ,
como outro Poeta falou…
E
é lindo o diamante em teu regaço; vertiginoso, o bólide leva ao rubro a multidão
– já pensaste? Vê mais longe – que de tísica morreu o garimpeiro e de silicose
o mineiro feneceu!...
Abraçamos
o mundo. Sentimo-nos gente no meio da multidão. Gente com nome. Pessoas!
Por
isso voluntariamente me deixei ferir, imolado, por esta espada fulgente!
Cascais,
19 de Dezembro de 2013
José d'Encarnação
Prefácio
a Notas de viagens – Ritmos e Mitos, de
Fernando Miguel Bernardes, edição
Mar da Palavra, Coimbra, 2015, p. 7-9.
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