terça-feira, 12 de julho de 2016

Uma conversa agachados na vinha…

            Então, avô, a vinha não é sua? Porque é que estamos assim meio escondidos a apanhar esse cachinho de uvas para mim?
            Sabes, eu tenho a vinha de guarda e se o senhor me visse aqui a apanhar uvas, quando eu lhe dissesse que me andavam a roubar, caso isso acontecesse, ele respondia-me logo: «Pois foi vossemeceia que andou lá e agora culpa-me!?».
Joaquim Encarnação Pereira (1887-1977)
Jaqueta e colete que foram de seu uso

            É curioso: quando me lembro de meu avô é este o primeiro episódio que surge. Creio que me terei sentido deveras importante, pois eu era seu cúmplice na transgressão!...
            Só depois é que vêm à lembrança as idas para a campina à alfarroba, o varejar das amêndoas e o saborear dos figos. E o porco. E a casa-de-banho sobre a pocilga…
            Alto, seco de carnes (diria hoje), sempre de barrete ou de chapéu preto na cabeça, lenço ao pescoço, colete, cachimbo invariavelmente na boca protegida pelo bigode… Vejo-o a irradiar serenidade, não me recordo de alguma vez o ter ouvido gritar.
            Hoje, que os meninos chegam a ter quatro avôs (os adoptados, às vezes, melhores do que os de sangue…), não se imagina o que é ter, como eu, apenas um (o outro morreu quando eu era de berço). Estava com ele nas férias grandes, uma semana ou duas. E era uma festa, era… «o meu avô!».
            Uma coisa eu nunca cheguei a perceber: porque é que minha avó tinha um quarto e o meu avô outro. Fazia-me espécie, mas achava que devia ser por mor do ressonar, do dar muitas voltas na cama. Quando meus pais passaram, também eles, a dormir em camas separadas, já compreendi melhor.
            Meu pai foi, de todos os filhos, aquele que mais se lhe pareceu. Até no cachimbo e no beijo matinal à garrafinha de medronho. Um dia, até me recitou os versos que o Aleixo dedicara ao Joaquim da Encarnação. Escrevi-os e enviei-os para Loulé – meu avô ia lá à feira – a fim de se incorporarem em nova antologia do poeta. Cometi a asneira de não ficar com cópia. Perderam-se; mas fica-me o orgulho de saber que também meu avô lhe merecera atenção!

                                                                        José d’Encarnação

            Publicado in SANCHO (Emanuel) e LOURENÇO (Ana Bela) [coord.], As Engrenagens do Tempo (Visão social da história de 30 anos de São Brás de Alportel – 1900-1930), Casa da Cultura António Bentes / Museu do Traje, S. Brás de Alportel, Junho de 2016, p. 35. [ISBN: 978-989-99341-3-9].

1 comentário:

  1. Aurora Martins Madaleno12 de julho de 2016 às 19:32

    Que pena não se lembrar, hoje, dos versos de António Aleixo a Joaquim da Encarnação, pois poderia partilhá-los connosco, agora.

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