quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cascais de entranhas picadas

             Por mais que finja, o escritor, de prosa ou de poesia, arrasta consigo o peso do que foi – ou é – o seu existir, a forma como, ao longo da vida, encarou o mundo que o rodeia. Nem sempre terá havido da sua parte uma consciência exacta do que se passava; mais tarde, porém, chegado aos 60, 70 até mais, ao reflectir sobre o passado, não só este lhe surge mais nítido (é a lei da vida!) como nele acaba por reconhecer virtudes ou defeitos de que, na altura, não lograra ter consciência.
            Celestino Costa, por exemplo, plasmou nos seus livros A Minha Terra e Eu (1992 e 1995) e Filosofia Saloia (1998) o que ora bem se recorda dos costumes vividos na freguesia de S. Domingos de Rana, em meados do século passado, quando era jovem e começava a ser adulto. Não admira, por isso, que Maria Micaela Soares, ao traçar as características da vida dessa Cascais de outrora, no seu inigualável livro Saloios de Cascais – Etnografia e Linguagem (Cascais, Abril de 2013) cite, por exemplo, versos do Celestino, a propósito do ciclo do pão e dos arreigados hábitos que pelas aldeias o rodeavam.
            Júlio Conrado tem outro olhar. Não o alicia a História como ciência nem os costumes do prisma do etnólogo ou do historiador. Nesta 3ª versão (Junho de 2017) de As Pessoas de Minha Casa – e «casa» são os ambientes por onde passou, desde a infância até agora – tudo escalpeliza sem dó nem piedade, cruamente, embrenhando-nos por caminhos que foram de muitos de nós, mas de que, por prudência, por medo ou por eventual pudor, até nem sonhamos querer recordar, quanto mais esmiuçá-los tintim por tintim, sem rodeios, por escrito.
            Sim, temos aí o ambiente vivido por pessoas na sequência de Revolução de Abril. Por pessoas. Com tudo o que a revolução trouxe de novo a nível íntimo, de convicções, de liberdade. Mas Júlio Conrado acabou por querer mostrar também o que fora o círculo dos seus relacionamentos desde a infância. Não insistirei em que se trata, esse, de um romance autobiográfico, classificação que, mui logicamente, o autor desde logo abjura; pode não estar ele retratado no protagonista, mas podia estar. E, para nós, os que, até por deformação profissional, procuramos reconstituir o que foi a vida desta Cascais desde Carcavelos ao Guincho em meados do século passado, isso pesa pouco na balança do historiador.
            Não se põem, contudo, as mãos no fogo se pensarmos em excluir esse jovem do número daqueles que, na praia de Carcavelos, estavam à espera do assobio do Tó Zé banheiro para irem ver «gajas nuas na cabina do chuveiro delas que merecem uma espreitadela pelo buraco que o Tó cuidadosamente descerrava, afastando a bóia, dependurada, que o cobria» (p. 180).
            Como o não excluímos das cenas da Instrução Primária, em que pontificava um «xenhor profexor», «beirão que elegera a expressão sê burro como invectiva favorita», «dois tostões para a caixa escolar. Datar, enumerar, carradas de pleitos contra sarracenos e negros», e que não hesitava em «malhar, cego, na tenra carne ao alcance da sua chibata» (p. 159).
            Descrição realista de um mundo que era assim, bem no sabemos.
            Duas outras descrições não resisto eu a partilhar, porque observadas de fora, num sarcasmo. De caminho, uma referência: «O emprego na Câmara, doze notas de cem de ordenado, catita para a época e para um chavaleco solteiro. O homem da situação que me arranjara trabalho na secretaria municipal agarrar-se-á a essa bóia depois do 25 para se sacudir de responsabilidades, argumentando que até dera dinheiro a ganhar a tipos do contra» (p. 58). E isso é preâmbulo para a refinada descrição da tradicional procissão cascalense da sexta-feira santa:
            «As autoridades descem a Marginal, integradas na procissão. O presidente da Câmara, o chefe da polícia, o tesoureiro da Fazenda, o comandante da Unidade, e talvez o representante local da secreta, marcham sob o pálio sem nenhum remorso. Chefia o desfila o pároco de anafados atributos gerindo a presença de Cristo entre aqueles senhores tão bem-postos e com uma compunção muito cangalheira nas fisionomias mas finórios como raposas na luta pela sobrevivência» (p. 58).
            Relata-se, mais adiante, o que poderia ter sido – e, se calhar, foi – a reacção perante os novos ritmos introduzidos nos bailes do Gil:
            «Quadrilheiras indignadas imprecam forte e feio desde os lugares reservados da sala. O baile deu neste circo, Senhor meu que já estais no céu a esta hora, mesmo de aí olhai como se vai perdendo a fé nesta santa terra, é vê-las largar as pernas pelas ancas deles, é vê-los pegar nelas como sacas de batatas, aluga a gente um camarote por um dinheirão para lhe sair na rifa uma bandalheira assim» (p. 59).
            Falas passadas a escrito, sem papas na língua. A certeira agulha da eficaz vacinação.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 223, 2018-02-28, p. 6.

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