quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O totem

             Nunca ouvira chamar totem à placa que ora se põe à entrada de monumentos para os identificar e, até, para, em poucas palavras, deles se contar a história.
            Sempre ouvira designar totem a representação de divindade ou ente sobrenatural colocada no acesso ao território dos índios. Isto no tempo dos filmes de cowboys da minha juventude. O totem era sagrado, defendia-se até à última, qual bandeira em campo de batalha. Assim plantado, não apenas impediria a intromissão do inimigo como abençoaria os amigos, gerando em torno de si benéficas radiações protectoras.
            Muito se discutiu, por exemplo, acerca do significado das esculturas achadas nos castros do Norte de Portugal, denominadas «guerreiros lusitanos». Correspondiam, de facto, à descrição lida nos textos antigos: protegiam-nos pequeno escudo redondo, empunhavam curto punhal, ostentavam num dos braços braceletes («vírias», palavra de que poderia ter derivado o nome Viriato). De pé, estáticos, qual guarda no Palácio Real de Buckingham… Deuses seriam? Ou apenas a representação ideal do chefe do castro, a impor respeito aos de fora?
O guerreiro lusitano, qual totem do povoado
            Assim longamente se discutiu até que, na Citânia de Sanfins (Paços de Ferreira), se encontraram pés esculpidos numa penedia de ingresso, dando a entender que a estátua dali fora arrancada. Esclarecido ficou o enigma: os guerreiros lusitanos eram os guardiães de castros e citânias. Aliás, não é sem motivo que se dá de caras com um deles à entrada do Museu Nacional de Arqueologia, em Belém, como que para dizer: «Eu protejo o monumento e seu recheio!».
            Gostei, pois, do uso do vocábulo totem. Pelo seu significado e, de modo especial, por se haver optado por um termo português, ainda que derivado – através do inglês, mas há muito tempo!... – de vocábulo «indígena da América do Norte, provavelmente da família do algonquino», lê-se no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. São os Algonquinos uma primitiva tribo do Canadá. Não gosto é da conotação que outro dicionário lhe dá: «Deus primitivo, informe e grosseiro, dos selvagens».
            Vieram estas considerações a propósito de se haver designado totem a placa ora colocada junto à porta de entrada nos Paços do Concelho de Cascais. Dir-se-ia que assim se sacralizava e se protegia o espaço. O espaço administrativo e o cultural, do Museu da Vila. Acho bem. Assim os espíritos bons nos protejam!
            E motivos há para essa protecção, tanto num domínio como no outro. E se do administrativo não ouso falar, o cultural não posso, mais uma vez, deixá-lo em silêncio, porque assim se concretizou uma aspiração de longa data. Era uma vergonha Cascais, vila pioneira em tantos domínios, não ter um espaço a contar os aspectos mais significativos da sua história. Relembre-se que, ao deitar-se abaixo o Pavilhão do Dramático, se disse que aí se faria o museu – e não se fez; que, ao remodelarem-se as Casas da Gandarinha, aí se faria o museu – e não se fez; que, ao pensar-se no aproveitamento da Fortaleza de Nossa Senhora da Luz, aí se faria o museu – e não se fez.
            Esta odisseia teve, portanto, a meu ver, um final feliz. E é visita que se impõe!
            A propósito: já tirou lá a sua fotografia como se em 1900 estivesse? Experimente!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 305, 2019-11-13, p. 6.

2 comentários:

  1. Um belo texto em que mais uma vez aprendi tanto, desta feita a propósito do significado da palavra totem que dá o nome à placa junto à porta dos Paços do Concelho de Cascais. E então aproveito a sugestão: um dia destes passo por lá para tirar a fotografia.Um beijo.

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  2. Neyde Theml
    Sua explicação de totem está excelente, precisa e respeitosa aos povos das Américas.

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