quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Um hino à literatura

            Vim no alfa, a regressar de Loulé, com Lídia Jorge. A escritora ia de abalada para Aveiro, onde teria uma intervenção a favor da importância da Literatura contra a pressa que hoje se tem e nada se lê como deve ser e nos impingem gato por lebre. Não foram bem estas as palavras, estou a citar de cor, que foi a ideia é que me ficou.
             Rejubilei.
            Não apenas porque perfilho a sua opinião, mas também porque esse fora o mote principal da cerimónia a que, no dia anterior, eu assistira no Casino Estoril. A cerimónia em que se entregaram os prémios literários de 2018: a Carlos Vale Ferraz, autor de «A Última Viúva de África» (Prémio Fernando Namora); a Judite Canha Fernandes, que escreveu «Um passo para Sul» (Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís); a Maria do Céu Guerra, Prémio Vasco Graça Moura – Cidadania Cultural.
            Longo e denso foi, por exemplo, o discurso de Carlos Ferraz. Dizia-me ele no fim, quando o cumprimentei, que se lembrara das palavras daquele galardoado: «Eu sei que tenho apenas 30 segundos para falar. Mas já que estou aqui pela primeira vez e é bem possível que seja a última, acontece que tenho algumas ideias para expor e não vou gastar apenas os 30 segundos!». Ele também não gastou só esses e foi longamente aplaudido, pela estrénua defesa que fez dos agentes culturais, tão vilipendiados pelas super-estruturas nacionais. Respigo algumas das suas palavras:
            – Repudio os «anátemas populistas contra os intelectuais»;
            – «Para mim, o romance é uma história; quero deixar a minha visão do mundo no tempo em que me foi dado viver»;
            – Eu «escrevo como sinto, enfrentando o mundo», porque cabe aos artistas confrontar os seus concidadãos contra as realidades cruéis, cumpre-lhes «lutar contra a anestesia do provincianismo», «desmascarar os falsos profetas».
            – «Que o belo não nos iluda e não nos prive da realidade!».
            Para Judite Fernandes, importa não perder a relação com a História e é através da literatura que repetidamente se visita a vida. Age-se, sublinhou, como se «a palavra de ordem fosse competir»…
            No mesmo sentido se pronunciou Maria do Céu Guerra: importa chamar a atenção para a realidade que se vive e para a necessidade de o Teatro – como se disse da Literatura – ser dela um eco permanente.
            «A Barraca», a companhia que criou e a que com sacrifício continua a dar vida, muitas vezes «ao arrepio das entidades do Estado», é, em seu entender, um Teatro-Cidadão. Um teatro que se bate pela liberdade – sempre! Que se bate por abrir perspectivas, mormente para os jovens. Que faz escola. Que assume a responsabilidade de defender a nossa língua, capaz de espalhar mensagens de luz. Teatro «para ser visto por muitas pessoas». Um teatro que tem casa e que luta para a manter, contra o constante sobressalto do desemprego. Um teatro-cidadão que trabalha horas sem fim. Que chama a atenção para o facto de ser o Homem «o único animal que dá cabo do local onde foi posto». Que adopta a «rejeição activa da indiferença!».
            Em dois dias e em lugares diferentes, de norte a sul, o mesmo veredicto: clamar! E, ao verificar assim de supetão tamanha unanimidade, não pude eu próprio deixar de me fazer eco, ainda que em palavras pobres, o que outrem soube tão bem proclamar. Felizes de nós por termos quem assim nos abana, como quem diz: «Acorda, acorda!»…
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 307, 2019-11-27, p. 6.

Judite Fernandes e Guilherme d'Oliveira Martins
Maria do Céu Guerra e Mário Assis Ferreira
A foto da praxe com os premiados
À conversa com Carlos Ferraz
Fotos gentilmente cedidas pela Gabinete de Imprensa da Estoril.Sol.

2 comentários:

  1. Se todos os premiados estavam de acordo, é porque, de facto, é preciso enfrentar a situação dessas formas de Cultura pausadamente: a História, a Literatura, o Teatro, interrogam a vida, estão em constante diálogo com ela, e é através dessa interacção que ajudam a resolver os problemas reais. Mas precisam de espaço e de meios para o fazer. Muito obrigada por mais este belo texto, ou forma de te fazeres eco das opiniões desses personalidades.

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  2. Um bom resumo do que muitos de nós pensamos e talvez se possa dizer que não vamos desistir de ao nível de cada um sermos mediadores culturais amadores ou profissionais e também creio ser adquirido que os poderes (?) evoluem no bom sentido... mas lentamente! Se não recuarem já é bom!

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