sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Atirar e… atirar-se!

            – Nada a acrescentar. Atira-o à Leonarda!
Leonarda fora, em jovem, uma moçoila jeitosa; hoje, dedicada esposa, mãe de filhos, professora universitária de mérito e directora da revista a que o artigo se destinava. Este «atira-o!» fez Rafael recuar umas três décadas e não resistiu, ao seu jeito meridional:
– Quem se atirava a ela era eu!
– Malandreco! – o comentário do colega que não se fez esperar, no correio electrónico imediato.
Contaram-me a história e eu fiquei a meditar: atirar! Que boa conotação tem este verbo!
E, no contexto em causa, vêm de imediato à mente os grafitos, rasgados em troncos de árvores ou nervosamente pintados em paredes, de um coração trespassado por uma seta. A seta que o Cupido atirara!
Dezembro é mês que também incita ao amor, designadamente ao amor místico, envolto no misterioso halo da celebração natalícia. E vem a Missa do Galo. E não é que o verbo ‘atirar’ está lá? Sim, quando a missa se celebrava em latim, o sacerdote dizia no final: «Ite, missa est!». «Ide, que a missa acabou» se traduziu muitas vezes; contudo, não é esse o significado, mas sim «Ide, já foi lançada!». «Missa» é o particípio passado do verbo latino ‘mittere’, que quer dizer ‘lançar’. Portanto, o que o padre queria dizer era confirmar que as preces haviam sido feitas, devidamente encaminhadas para a divindade. Setas de amor atiradas para o Alto!
Mantendo-nos na ideologia católica – e porventura noutras religiões o mesmo acontecerá – preconiza-se o uso quotidiano de jaculatórias, pequenas preces em momentos específicos, trechos breves amiúde retirados da Bíblia, como, por exemplo, «Que o Senhor nos acompanhe», eco, porventura, da saudação do anjo Gabriel a Nossa Senhora: «O Senhor está contigo!». E ‘jaculatória’ vem de «jaculum», dardo!
 
Certamente já todos viram alguma cena com pessoas do Médio Oriente, sobretudo homens, a voltearem na mão um fio cheio de bolinhas. É o ‘compológuio’, um rosário muçulmano, como o terço dos católicos. Hoje, o ‘compológuio’ funciona como entretenha para as mãos, um serenador de tensões; originalmente, cada bolinha era uma prece…
– Não pense nisso! – disse eu, ao passar por uma senhora com ar de angústia, olhar vazio no corredor da movimentada grande superfície. Nem pestanejou nem retorquiu. Não seria algarvia nem alentejana, que essas não deixariam cair a frase em saco roto. Ou talvez tenha pensado que eu me estava a atirar a ela!... Não estava mesmo! Queria apenas… ser serenador de tensões!...

                                               José d’Encarnação

 
Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 301, 18.12.2021, p. 17.

2 comentários:

  1. Zé atira te....e amanda??? Sempre gostei muito deste vocábulo,sobretudo quando era criança e gostava de amandar a bola...já que amandar deveria ser o verbo adequado para enviar de volta a bola ao parceiro.Pois o que se pretende é dar ordem ( mandar) à bola para retornar ao colega.Portanto se fizesse um dicionário colocava lá a palavra amandar...e tenho dito!

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  2. O que eu aprendi com este texto, até sobre palavras latinas. O Latim atormentou-me pelos dois anos em que "tentei" aprender, embora tentar seja usar o verbo abusivamente, porque nunca fiz o menor esforço. E no entanto, quanto me teria ajudado a descodificar o étimo de certas palavras. Atirar...Nunca dei muita importância à palavra, mas tal como o diferente alcance que o acto pode atingir, também a sua designação encerra um mundo de significados. E já agora, é bem ousado ATIRAR um "não pense nisso" a uma desconhecida que náo nada saberá de compológuio...

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