sexta-feira, 14 de abril de 2023

A NOITE DOS ASSASSINOS, PELO TEC

          


             Está em cena, no Mirita Casimiro, até 25 de Abril, a peça, do cubano José Triana, intitulada «A Noite dos Assassinos». Perturbante, sim; enigmática, muito; sujeita a diversificadas leituras.

 

            Pode a afirmação ser polémica; contudo, perfilho a opinião de que o quadro de um artista mais rico é quanto mais leituras e interpretações proporcionar. Assim, «A Noite dos Assassinos».

Hoje, depois de ter lido e relido a apresentação que Miguel Graça, o homem que que, diligentemente e com a maior competência, se encarregou – como, aliás, o tem sido – da dramaturgia da peça, consolidei essa ideia: leituras variadas pode ter esta clausura de três irmãos não se sabe bem onde, se num sótão, numa cave ou num quarto esconso, para perpetrar – ou já perpetraram! – a morte dos pais.

Diga-se, para já, que os mui dignos senhores da censura não gostaram, quando, em 1970, Jorge Listopad a encenou para o TEC, tendo como actores Manuela de Freitas, Maria do Céu Guerra e Sinde Filipe. Viram uma vez, viram duas, houve alguma pressão para que se não esperdiçasse o trabalho feito, mas as ‘influências’ não surtiram efeito e, para os censores, aquilo não poderia ser mostrado – e pronto!

Desabafa Listopad:

«Foi o meu melhor espectáculo, porque acabado e não consumando. Obra interrupta, o navio proibido de navegar, sem conserto, condenado. Ainda vejo os carrascos a voltar à esquina, à procura do motorista fardado».

Acredito que – por esse motivo e não só – esse tenha sido o seu «melhor espectáculo», porque acredito também nos amargos de boca que teve Carlos Avilez para mui rigorosamente dirigir os actores, acompanhado por Fernando Alvarez, que estudou os figurinos e a cenografia.

Na verdade, o texto em si – que me perdoe Orlando Neves, o autor da tradução – acaba por perder-se, até porque a articulação dos actores (refiro-me à noite de estreia) não permitiu uma audição nas melhores condições. O que mais se recorda, posso estar errado, é, de modo especial, o peso da atmosfera, os ferros nus do mobiliário, a austeridade suprema. E, sobretudo, o som cavo daquela porta metálica ao fechar, isolando os personagens do exterior… Fez-me lembrar igual porta, grande e metálica e pesada, que se fecha atrás de nós, ao entrarmos, em Berlim, no Museu do Holocausto…

Fecharam-se em si, com os seus medos, as suas dores, os seus ódios, a lúgubre visão de algo para que não há saída visível. Podem transformar-se em juízes, em réus; podem agarrar numa longa faca – qual catana – prontos  a desfechar golpe mortífero no primeiro que lhes aparecer pela frente; podem sonhar… mas o seu sonho não ultrapassa a espessura daquelas paredes!...

Se saímos acabrunhados?

Saímos!

Retemos, porém, as imagens fortes de três magníficos actores (Elmano Sancho, Lia Carvalho e Teresa Coutinho), sempre em cena, que estudaram todos os pormenores, todas as entoações, todos os gestos, todos os movimentos, nem de mais nem de menos, numa tensão de que só no final, ao agradecerem os aplausos, terão sentido algum alívio. Que o drama também os afectou, porque optaram por o fazer seu, por mostrarem que… ia a escrever que há conflitos de gerações, porque essa tem sido – a par da possível imagem de uma Cuba antes de Fidel e sob a outra ditadura – uma das interpretações desta Noite.

Aceito.

Como aceito – oh! se aceito! – que o teatro aí está para desmascarar uma realidade de que discordamos. E quando, ao sair, ousamos ligar-nos à Comunicação e, por ela, ao mundo, vemos o homem que, à machadada, mata crianças; o jovem que, à facada, mata a mãe; os judeus que matam palestinianos e palestinianos que matam judeus; que se entra numa mesquita e se espalha o terror… É verdade: o teatro aí está, para, em pouco menos de duas horas, num espaço fechado, dialogar connosco, em jeito de quem pergunta: «É isto o que realmente queres?».

Respondemos «Não!». Não temos, porém, as armas para o conseguir.

            No final da estreia, como é habitual, por ser Dia Mundial do Teatro (27 de Março), foi lida  a mensagem da atriz egípcia Samiha Ayoub, de que tomo a liberdade de colher esta passagem:

            «Cabe-nos a nós, dramaturgos, portadores da tocha que ilumina desde a primeira aparição do primeiro ator no primeiro palco, estarmos na vanguarda da confrontação com tudo o que é feio, sangrento e desumano. Confrontamos isso com tudo o que é belo, puro e humano. Somos nós, e mais ninguém, quem tem a capacidade de espalhar vida. Espalhemo-la juntos, em nome de um só mundo e de uma só Humanidade».

            Assim é.

                                                                      José d’Encarnação 

 

    Publicado em Duas Linhas, 8-04-2023. 


Carlos Avilez saúda os actores, no final.

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