sexta-feira, 14 de abril de 2023

Assistiu, vivo, à missa por sua alma!

             Não, essa história o Manuel Genciano Morais Afonso não a incluiu no livro Australopiteco, datado de Fevereiro de 2022, de Edições Astrolábio. Contou-ma a mim e deixou para o livro outras andanças.



Poderá parecer, à primeira vista, quer pelo título (a recordar um dos hominídeos antes do Homem), quer pela imagem da capa (o Stonehenge em céu bem carrancudo), que se ia ter um livro de História ou, até, de Arqueologia.

Nada disso!

Depois de umas páginas, não muitas, em que dá conta do seu percurso estudantil e onde nos convencemos que vamos ter livro de memórias, apercebemo-nos que não: é livro de viagens, na medida em que, na maior parte do volume, Genciano Afonso conta, basto de pormenores, as muitas e circunstanciadas viagens que fez, sobretudo pela Itália. Claro, também em Portugal, em Tomar, por exemplo, onde tem a sua casa de férias, e adregou, portanto, visitar em jeito de extraterrestre, com nave espacial e tudo, o convento, o que lhe permitiu incursão pela história dos misteriosos Templários, hoje tão de moda.

            Pela Itália andou de caravana, de carro, de comboio (num daqueles que param em todas as estações, para poder auscultar melhor o sentir das gentes) e, de vez em quando, por desfastio, lá pegava num drone e ei-lo com vistas admiráveis para descrever.

Narrativas que vivem do hábito que tomou não apenas de ler atentamente os guias de viagem, mas de tudo anotar: aqui comi isto, ali a refeição custou-nos os olhos da cara, acolá havia uma fila que nunca mais acabava.... E deitou as moedas na Fontana dei Trevi. E penetrou nas catacumbas de S. Calisto. Só não viu o Papa, mas descreveu a Capela Sistina, deliciou-se com gelados e bom café…

            Enfim, descrições minuciosas de quem faz questão em tudo partilhar dos muitos apontamentos minuciosamente tomados. A história da morte é que aí não contou. Contou-ma depois e aí vai!

 

«O senhor morreu, vem aqui no jornal!»

            Andou Manuel Genciano no seminário salesiano e também essa passagem pelo colégio de Mogofores (as refeições, as tarefas, os passeios, o quotidiano, a música…) lhe merece descrição no Australopiteco. Não seguiu, porém, aí os seus estudos e matriculou-se nem História a Faculdade de Letras de Lisboa. Foi ranger no Norte de Moçambique e a essa tropa também faz referência.

Dormia a sono solto, na capital, a 28 de Fevereiro de 1969, num andar da Actor Taborda, quando, às 3 h e 41 m, o País foi sacudido por um sismo de intensidade 7,9 na escala de Richter.

Saltou para a rua, em pijama, como a maioria das pessoas e só viria a acordar numa cama de hospital. «Como é que se chama?», perguntou-lhe o polícia, «dê-me um número de telefone para avisar os seus familiares». Soube depois que o seu corpo mais ou menos inanimado andara de Anás para Caifás, porque os feridos eram tantos que não havia camas nem macas que chegassem. Acabaram por o pôr a um canto, numa enfermaria de grávidas em eminente risco de parir… No dia seguinte,

– O senhor está morto, diz aqui no jornal – mostrou-lhe uma enfermeira.

Na verdade, o seu nome constava do rol daqueles que desta se haviam passado para melhor. Riram-se todos. Apalpou-se para sentir bem que estava vivo. Estava. Dias depois teve alta, de muletas, porque, felizmente, fora mais o susto.

E a primeira ideia foi ir às Oficinas de S. José, dos Salesianos, em acção de graças. Acomodou-se num dos últimos bancos da capela. Eis senão quando, no início da missa, o padre enuncia as intenções e termina «Também por alma do nosso querido amigo Genciano, infelizmente falecido neste cataclismo que nos assolou».

– Se tivesse um buraco, enfiava-me por ele abaixo – confidenciou-me.

Não se enfiou, ficou muito quietinho e, no final, saiu sorrateiramente sem dar de vaia a ninguém. No dia seguinte, a caminho de Vila Praia de Âncora, onde tinha a família, parou numa das casas salesianas do Porto. Bateu à porta. O padre que veio abrir, deu com ele e… desmaiou! O Genciano gritou por socorro lá para dentro, acorreu outro sacerdote que, ao vê-lo, zás, caiu também desamparado!... Era, senhores, uma alma do outro mundo!

Não consta esta, como disse, nas muitas histórias que, em jeito dialogante e cheio de apartes, Genciano Moras Afonso se deliciou a contar das viagens e peripécias, onde a sua formação em História, como é natural, jamais deixou os créditos por mãos alheias!

 

                                                           José d’Encarnação

 

Publicado em Duas Linhas, 9-04-2023

 

 

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