sexta-feira, 14 de abril de 2023

A torre pra ver o mar!

             Cresce a erva, livremente. As árvores de fruta há muito que não são podadas e mais parecem estranhas esculturas descarnadas. Os pinheiros bravos, esses, esguios, seguram a copa ainda verde lá bem no alto. Deitadas, uma a seguir à outra, enormes talhas de boca negra lamentam-se de já não servirem para guardar aquele saboroso néctar alentejano; abandonadas, ali, sem préstimo algum.

Para o ausente canito, erguera-se mui preciosa casota alpendrada, de caprichoso telhado. Fica logo a seguir ao portão de entrada e guarda o longo caminho pergulado, vorazmente assaltado agora pela impertinência das heras; leva a um átrio outrora acolhedor.

A mansão estende-se por dois pisos. O que, porém, mais se destaca é a torre, enorme, esguio paralelepípedo a terminar em resguardada câmara totalmente envidraçada. Dali se veria o mar… Quase a meia altura, nas quatro arestas, elegantes fachos sentem a falta do quente clarão com que alegremente alumiavam convívios…

Dei comigo a pensar na Torre dos Quatro Ventos, do «Barranco de Cegos», de Alves Redol: «A figura imponente do lavrador, sentado na cadeira onde o caruncho roía, roía…». Longe vá o agoiro!... Preferi imaginar o patriarca da família, a levar os convidados lá acima, um degrau após outro, ou, já ancião, os netinhos, para a todos maravilhar. Orgulhoso estaria, por ver do alto as amplas copas dos pinheirais ainda não muito salpicados de casas, desde a Aroeira até ao oceano além. E quiçá se lembraria também daquele e daqueloutro e mais outro romântico pôr-do-sol…

            Senti espreitarem-me as lágrimas do abandono. «Refúgio» está escrito na placa de entrada, ao lado do portão enferrujado. Nas paredes laterais, carreiros de formigas apressadas, muito apressadas, sobem e descem, frenéticas, em incontida azáfama. Vejo os quase impercetíveis buracos na terra e outros sob as placas de pedra da parte superior do muro por onde elas se esgueiram. Usufruem, elas, do manto da confrangedora solidão que ora envolve este esplendoroso sonho agora aparentemente perdido.

            E, de novo, Alves Redol:

«Abriu uma das janelas, olhou à volta e resolveu-se a sacudir o avô, deixando que a brisa da tarde pegasse naquela poeira fina e branca. Tão branca e tão fina que uma espécie de nevoeiro começou a serrar-se à volta dos limites de Aldebarã, envolvendo-a com o manto espesso de uma noite estranha e alva na qual voavam abutres…».

            Eu não gostaria que tal ali viesse a acontecer!

 

                                                                                José d’Encarnação

 Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 842, 15-04-2023, p. 10.

1 comentário:

  1. O Fausto e a Decadência. Podiam ser nomes de personagens, mas não de ficção, porque na vida real acabam muitas vezes enlaçados.
    Nem sempre os devemos analisar como conceitos negativos, tal como faz José d´Encarnação neste texto, conduzido apenas pela tristeza de ver um sonho abandonado.
    Ao sonho até o fausto se perdoa, ainda que megalómano. Mas de facto entristece imaginar que um "Refúgio" que em tempos foi afagado (e afagou) alguém, jaz agora abandonado à incúria.

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