sexta-feira, 14 de abril de 2023

Nasci para ser poeta!

           

Se alguém poderia ter, um dia, esta exclamação, esse alguém poderia ser, com razão plena, António Salvado, por, na verdade, dele se poder dizer que toda a vida respirou poemas. Respirou-os e no-los quis transmitir com uma cadência passível de ser classificada como ininterrupta. 

Calou-se a sua voz, aos 87 anos, no passado 5 de Março. Não sem antes, quando o internamento hospitalar se lhe revelou indispensável, se ter voltado para os seus familiares e lhes ter garantido que seria mais uma experiência a narrar nas suas rimas. Não teve ocasião para isso, desta feita; tenho, porém, a certeza de que algo logrou alinhavar e de pronto mostrou lá ao S. Pedro, assim que ele lhe abriu as portas: «Olha o que eu alinhavei? Gostas?».

E S. Pedro gostou com certeza.

Perdoou-lhe, desde logo, que muito se haja demorado a estudar mitologias gregas e romanas, a falar de lúbricas deusas e de constantes tricas entre elas e seus amores e inspirações. Perdoou-lhe, porque bem compreendeu que essa formação clássica lhe proporcionou alargada visão do Mundo e do Homem e, por esses alegóricos caminhos, acabou sempre por realçar a Humanidade e o que de mais nobre o Mundo deveria ter.

Sim, compreendeu também S. Pedro aquela farpa quase escondida (mas venenosa!...) na biografia mínima que desejou incluir na bandana da sua última antologia, publicada pelo município albicastrense, «ex-director de um museu do Estado». Assim, sem mais explicação, que a bom entendedor meia palavra basta. S. Pedro entendeu a mensagem e decerto vai diligenciar para que esse «museu do Estado» que tanto amou e tantos amargos de boca lhe deu, ressuscitará, um dia – ou não trouxesse este Abril forte sopro de renovação!...

            Não se diz expressamente em Poesia de Amor nos Versos de António Salvado (TVJ Editores, 2023) quem escolheu o conteúdo. O autor, sem dúvida, que deixou para José Maria da Silva Rosa o encargo de um prefácio denso, qual ensaio sobre a densidade de um poeta. Uma escolha basto difícil, asseguro; mas agradável foi a escolha do título: «Poesia de Amor». Chave d’ouro de tão fértil caminhada! Quis António Salvado, instintivamente porventura, deixar-nos esse mensageiro legado? Acredito que sim. Que o Amor é para ser cantado, é para ser celebrado, é para lutarmos por ele!

            E recorto o terceto onde, assim, como que por acaso, meus olhos vieram pousar:

 

            Aleluias de sol cruzam o tempo

            A melopeia do celeiro aberto

            Derrama grãos sobre o instante agora.

 

            Perdoa-me, António, se, desta sorte, os retiro do poema em que postulas junto ao teu o permanente sussurro da tua amada. É que, na verdade, aqui, o pessoal é transcendente. De repente o vemos lá no alto, melodioso e límpido, qual celeiro aberto de grãos a serem derramados sobre o instante agora.


É que, António, perdoa-me, decerto não terás pensado nisso quando, por volta de 1987, burilaste o poema: de bem suculentos grãos estamos mesmo precisados agora! O grão da Poesia, sim; mas, por ela, os outros, concretos, que sabem matar a fome.

            E descansa, Mestre: aprendemos a lição!

 

                                                                                   José d’Encarnação 

 

            Publicado em Duas Linhas, 11-04-2023

1 comentário:

  1. Tive o prazer de ler e comentar no Duas Linhas, este magnífico texto sobre o grande António Salvado. E creio que sim: esse Museu do Estado parece estar a ressuscitar.

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