segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Carmen Dolores «No Palco da Memória»

            Tive ocasião de escrever acerca de Retrato Inacabado (Lisboa, 1984), o livro anterior de Carmen Dolores:
            «São páginas vibrantes de humanidade, a actriz a falar alto consigo própria, não em lamechice saudosa, mas num discorrer suave em que a cronologia não conta, as ideias prendem-se umas às outras, as recordações brotam» (Jornal da Costa do Sol, 25-04-1985, p. 19).
            Esta característica, de prosa escorreita, despretensiosa e singela pode igualmente apontar-se neste segundo livro: No Palco da Memória (Sextante Editora, Lisboa, Fevereiro de 2013, ISBN: 978-989-676-163-9).
            Trata-se, como o próprio título indica, de livro de memórias, bem ilustrado com mui adequadas e sugestivas fotografias; sem datas; sem gralhas. Dedicado ao marido («Ao Victor, companheiro exemplar, que não sei como mereci»), consagra-se como o resultado daquele impulso inevitável, no Outono da vida, que assalta quem muito viveu e sente a obrigação de partilhar a experiência longamente adquirida: C. Dolores nasceu a 22 de Abril de 1924, estreou-se na rádio aos 14 anos e decidiu terminar a sua carreira no teatro em 2005!
            Há, pois, no livro a arrumação do passado na 1ª pessoa: o que fiz, como fiz, o que senti, o que aprendi, o que ficou. Disso versam os capítulos «De mim», «Encontros e desencontros», «Da observação», «Da imaginação», «Da profissão», com especial realce para este último, onde Carmen Dolores se… confessa!
            Uma confissão a ser meditada, ainda que a autora se interrogue a dado passo: «Não estarei a repetir-me demasiado? Não serão banalidades o que acabo de escrever?» (p. 151). E explique: «Mas nada do que escrevo pretende ser didáctico ou pretensioso. São considerações minhas, baseadas em momentos vividos, contadas com sinceridade e escritas ao correr da pena» (p. 165).
            Depoimento importante, porém, para melhor se compreender não apenas a grande actriz mas tudo o que a envolveu ao longo dos muitos anos da sua actividade. Uma lição, de resto, para todos, nomeadamente os que almejam seguir a via artística como profissão e missão; e o repositório histórico do Teatro no decorrer do século XX que daqui se desprende revela-se bem oportuno, elucidativo e útil.
            Carmen Dolores observa argutamente a realidade. Deixa cair, aqui e além, como quem não quer a coisa, um apontamento sintomático, como, por exemplo, quando refere quem vai à inauguração de exposições: «Outros, que passavam para comer umas coisas, que àquela hora já apeteciam, fazendo dispensar a refeição da noite» (p. 44-45). Alude aos «beijinhos distraídos das mulheres apressadas» (p. 75); e ao «jornalista entrevistador, quando na televisão arma malcriadamente em juiz do político entrevistado, ali à sua mercê» (p. 91). Explica que, «no fundo, as pessoas vão ao teatro para se verem retratadas, para se encontrarem consigo mesmas, para aprenderem a conhecer-se melhor e a melhor entenderem os outros» (p. 99). Argumenta que «o actor tem de saber ouvir o público no seu silêncio» (p. 104); que estamos «nuns tempos em que já ninguém escuta ninguém» (p. 150). E recomenda que, «quando comentamos as atitudes dos outros, não esqueçamos nunca o espelho que nos reflecte a nós mesmos» (p. 150). E frisa, mais do que uma vez, o poder do louvor, a magia contagiante dos aplausos! Por vezes, até parece que se distrai e entra em diálogo com as pessoas de quem está a falar: «Nunca falámos nisso, nem ninguém o soube, mas eu jamais o esqueci, Ribeirinho!» (p. 48).
            Solta-se-lhe, de vez em quando, no seio dessa acutilante observação das gentes, a vontade de esmiuçar melhor o que vê. Assim, a magnífica e comovente história da mulher que sai da prisão (p. 70-73), um conto, diria eu, de antologia, que termina assim: «Atravessou o mundo sem conhecimento de ninguém, como se tivesse vindo do além e tivesse de novo partido, a caminho desse além…» (p. 73). Uma história pungente que, sem dúvida, amiúde se há-de repetir, sem que ninguém disso se aperceba! E morreu o Sr. Pires, porteiro do prédio; Carmen passou pela igreja de Fátima: «Àquela hora era ele o único morto e eu a única pessoa viva» (p. 51).

A sabedoria que a experiência dita
            E se em «Encontros e desencontros» temos desfile de personalidades com quem Carmen Dolores se cruzou e sobre quem, sem rebuço, dá a sua opinião, é em «De mim», «Da observação» e «Da imaginação» que mais sentimos o pulsar humano dessa experiência vivida. E daí será difícil não coligir algumas frases, para meditação maior, frases que no livro também eu sublinhei, como era hábito da artista: «Esta minha mania de sublinhar os períodos que me dizem mais!» (p. 40).
            «Não deixem o sonho fugir. Tranquem todas as portas» (p. 57).
            «Hoje já não há meninas à janela. Hoje, as meninas ou estão a comunicar com desconhecidos, através da Internet, em jogos, por vezes, perigosos de sedução ou a dançar freneticamente na night ensurdecedora» (p. 57-58).
            «Não parecia ter nome a filha da Senhora Duquesa. Talvez na intimidade… teria intimidade? […] E a Rosa, que é pobre, mas todos no bairro sabem que se chama Rosa, virá, feliz, corada, dar a mão à mãe, que também todos sabem ser Maria da Silva, costureira de alfaiate» (p. 68).
            «Em resumo: o Teatro deveria ser uma disciplina obrigatória, até como complemento da língua portuguesa» (p. 98).
            A última parte do livro constitui um registo: as personagens que interpretou (p. 119-170); o relacionamento com o cinema, a televisão, a rádio, «os admiradores e a Casa do Artista» (p. 171-198); «O que disseram de mim», colectânea de recortes (p. 199-243), de que destaca alguns depoimentos especiais (p. 245-254). Termina com uma pequena biografia.
            Se o primeiro livro foi Retrato Inacabado, este pode, na verdade, ser tido na conta de um complemento, a dar mais umas pinceladas de esboço no que foi (e ainda é!) uma vida rica, com muito para ensinar. E este No Palco da Memória (bonito o título, deveras!) compendia bastos ensinamentos!

Publicado em Cyberjornal, 07-10-2013:

2 comentários:

  1. Joaquim Isqueiro Que belo texto, amigo. Que sensível e bonita apreciação, com tanta suavidade relatada, que nos mete de imediato no livro e nos aguça a vontade de o ler. Gostei muito, amigo, dessa forma tão humana de falar das coisas e das pessoas, que conheço há muito tempo, da leveza da descrição que prende e cativa. Ainda por cima sobre essa grande Mulher, que sempre admirei. Obrigado, amigo, um grande abraço.

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    1. Bem hajas, Isqueiro! Fico contente por teres gostado. Vamos tentando semear serenidades quando à nossa volta reina a amargura! Um abraço!

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