E
apreciei deveras a forma como, a maior parte das vezes na primeira pessoa, em
autobiografia, Ney Matogrosso (Ney de Souza Pereira, de seu verdadeiro nome,
nascido a 1 de Agosto de 1941, em Mato Grosso do Sul, no Brasil) vai apresentando
as várias fases da sua vida:
«Ainda
pequeno, escolheu o caminho do questionamento das reticências do mundo adulto,
inconformando-se com seus preconceitos e incoerências». «Teve a infância e a
adolescência marcadas pela solidão, em parte voluntária – gostava de passar
horas seguidas no mato, acompanhado somente por seus cachorros – e por outra
parte forçada, pelas constantes mudanças da família, decorrentes das
transferências de seu pai militar». «Desembarcou no Rio de Janeiro em 1966,
onde passou a viver da confecção e venda de peças de artesanato em couro. Ney
adoptou completamente a filosofia de vida hippie».
Trabalhou
com a irreverente Ruth Escobar; viveu os tempos da censura no Brasil e valerá a
pena recortar também esta passagem:
«Na
temporada do Rio de Janeiro, no Teatro Tereza Rachel, durante um mês convivi
com uma censora permanente, dentro do meu camarim. Ela chegava junto connosco
no teatro e ficava no meu camarim até o show
acabar. Eu tirava a roupa na frente dela, com a maior naturalidade, e não sabia
o que ela fazia ali. […] Tínhamos que fazer shows
duas vezes. Uma para a censura. Fazer show
para a censura era como ensaiar marcação de teatro. Três passos para cá, três
para lá. Eu não podia me pintar daquele jeito, não podia usar rabo-de-cavalo,
não podia requebrar. Chegaram a querer censurar o meu olhar. Mas o Secos e
Molhados nunca foi proibido, porque era um fenómeno brasileiro. Até as crianças
gostavam. Tive mais problemas com a censura depois que me lancei em carreira
solo».
A
cena me fez lembrar os tempos heróicos do Teatro Experimental de Cascais, aqui,
onde também a PIDE assistia ao ensaio geral… «Três passos para cá, três para
lá»...
Um espectáculo
«O
Bandoleiro» (1976) e «Rosa de Hiroshima» (1979) são, seguramente, os temas que
de imediato nos ocorrem quando falamos de Ney Matogrosso, para além da sua
enorme extravagância no modo de se apresentar em público.
Assim
foi, de facto, na gala em que, no passado dia 4, nos presenteou com os temas do
seu novo álbum «Atento aos Sinais». Um privilégio, no Salão Preto e Prata do
Casino Estoril, repleto de vultos conhecidos da nossa sociedade.
Ney
Matogrosso foi… um espectáculo! E a palavra não assume, aqui, o tom habitual,
jocoso, popularizado por Fernando Mendes. Não. Quero dizer mesmo isso: o
artista, mudando amiúde, no palco, de vestimenta, mostrando mais ou menos do
seu corpo, acentuadas de propósito as curvas e as partes pudendas mediante
roupa cingida, foi sensual, foi cantor, foi bailarino, foi… Artista! Ao vê-lo
assim movimentar-se, requebrando-se, como atrás se referia, comentávamos:
«Muito ginásio, hein, para quem tem 75 anos e bem se sabe cuidar fisicamente!».
Também nesse aspecto um exemplo!
Seria injusto, porém, se não
acentuasse o facto de o «espectáculo», centrado, sim, no artista, ter beneficiado
de muito cuidada técnica envolvente: os jogos de luz, os vídeos que, de vez em
quando, sublinhavam os temas e, de modo especial, o brilhantismo dos seus
músicos: Sacha Amback (direcção musical e teclado), Marcos Suzano e Felipe
Roseno (percussão), Dunga (baixo), André Valle (guitarra), Aquiles Moraes
(trompete) e Everson Moraes (trombone de varas). Exímios, todos eles; contudo,
não pôde passar despercebida a dupla dos ‘metálicos’, que sublinharam com muita
oportunidade e saber os momentos mais significativos da actuação.
Ocorre-me a expressão «animal de
palco», que poderá parecer ofensiva; no entanto, essa foi, sem dúvida, a
sensação de todos nós: Ney Matogrosso é isso mesmo!
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 159, 12-10-2016, p. 6.
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