Guiné,
Angola e Moçambique, os palcos preferidos, porque os mais sangrentos e
lancinantes. Houve, porém, uma outra «província», perdida lá nos confins do
Extremo Oriente, que só de tempos a tempos, e pelos piores motivos, foi alvo de
atenção .
Timor
O
escritor timorense Luís Cardoso, residente em Oeiras, consagra-se como um dos
poucos que, paulatinamente e com base na experiência e na investigação , vai passando a escrito as tradições milenares
de um povo, ou melhor, de uns povos, para nós, ocidentais, envoltos em mui
estranhas concepções.
O
seu segundo livro, «Olhos de coruja, olhos de gato bravo» (Publicações Dom
Quixote, 2002) pode ser encarado como um retrato do Timor aí pelos finais da
década de 60. Propositadamente, não há referências cronológicas. Apenas quase
no fim se alude à Revolução de Abril
e se dá a entender que a organização
em partidos das várias tendências políticas vigentes poderá vir a alterar profundamente
o frágil equilíbrio dos poderes até então alicerçados nas famílias tradicionais
e na riqueza em terras e em animais.
O
relevante papel da Igreja Católica. Nada se faz sem a opinião de Padre Santa,
influente junto dos poderes políticos e eclesiásticos, suspeita-se que não apenas
da metrópole mas até da Cúria. Personagem de enorme influência a todos os níveis.
Secunda-o o catequista, pai de dois gémeos (Mateus e Matias) e da protagonista,
que, após longas discussões, receberá o nome de uma antepassada, Beatriz. Um
nascimento tardio, que até parece ter apanhado o pai desprevenido, atendendo às
suas inúmeras andanças em prol dos catec úmenos,
espalhados pelo território, mormente para presidir a cerimónias fúnebres…
Uma narrativa intrigante
Retratam-se
em pormenor os complexos rituais que rodeiam o nascimento. E o facto de a criança
ter nascido (dizem!) com olhos grandes – nunca se chega a perceber qual o
problema… – determina que lhe ponham, de imediato, uma venda, que a irá acompanhar
até à última página, em que se consuma o seu casamento com um oficial de olhos
de gato, o derradeiro administrador do território nomeado pelo Governo de
Lisboa. Mistério!...
Não
é, por conseguinte, livro de leitura fácil, nas suas 150 páginas, de raríssimos
parágrafos, períodos curtos, letra miudinha. E em que se contam, porventura,
pelos dedos das duas mãos as frases em discurso directo.
As
intrigas familiares, as reacções psicológicas, os conflitos latentes. Romance
psicológico e de costumes, desgarrado de uma paisagem concreta identificável ou,
mesmo, de um período histórico cronologicamente balizável. A venda negra nos olhos
– que dizem ter formato dos da coruja… – parece assumir-se, de facto, como
estratagema para que nem tudo se veja, ainda que, paradoxalmente, a
menina-da-venda-nos-olhos seja a narradora e veja mais do que muitos que, aparentemente,
vendas não têm.
Romance
intrigante, a trazer alguma luz – como outros do mesmo autor – sobre um
território ainda hoje dificilmente compreensível para quem nunca por lá passou.
E, mesmo para esses, os que por lá passaram, muitos dos mitos e da realidade estarão
para todo o sempre ocultos sob densa penumbra. Trata-se de um romance, bem no
sei, e não um documento etnográfico e o escritor segue a sua filo sofia; mesmo sabendo que o livro vai destinar-se
primordialmente a um público português. Não seria, por isso, despiciendo ter-se
incluído um apêndice explicativo de termos, de lugares, de circunstâncias,
porque ali há etnografia, há história, há vocábulos próprios…
«Padre
Santa tinha dito que eu já tinha visto tudo. Não era verdade. Faltava-me ver os
olhos dele. Eram verdes como de um gato bravo. Com a mão fechei os olhos dele.
Depois disso não vi mais nada. Como se tivesse fechado os meus próprios olhos».
Assim
termina.
Na
antinomia entre o ver e o não-ver. Uma protagonista que nunca viu com os olhos e
muito soube e um apaixonado que dela se enamorou e que às suas mãos vem a sucumbir
por amor, de alfinete de ouro espetado no coração .
Um drama romântico ou o drama de um povo? Afinal, de quem era a cegueira? E
quem a tão enigmática Beatriz?
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 157, 28-09-2016, p. 6.
Julia Fernandes
ResponderEliminar2/10 às 17:07
Gosto muito do que escreve o Luís Cardoso. Pouca gente escreve sobre Timor, mas o Luís escreve com a alma.