terça-feira, 9 de maio de 2017

Fazer grumos com o sabão

            Estás a ver, Henrique? Eu bem te dizia: a água do poço é mesmo salobra, faz grumos com o sabão!
            Sabão azul e branco, o indicado para as sujidades nas calças de cotim e de ganga. Lavava minha mãe num grande alguidar de zinco com fundo de madeira, onde, ao domingo de manhã, tomávamos banho nós. Lavava a nossa roupa e a de vários trabalhadores solteiros são-brasenses que haviam demandado as pedreiras de Cascais. Quando podia é que ia ao tanque da aldeia: entre uma enxaguadela e outra, lá ia também sabendo as novidades…
            Lembrei-me dos grumos, quando, há dias, após o duche, passei pelas pernas secas um pouco de óleo de amêndoas doces e quis lavar, depois, as mãos com sabonete. Espuma: cadê? Fazia grumos, como que minúsculas bolinhas… Há anos que a palavra não me ocorria e fui depressa meter o nariz no dicionário: grumo, «grânulo», derivado do latim, «grumus», «montículo», «coágulo»; os gregos chamam-lhe «viscoso coágulo».
            Grumos… E, à noite, ao ouvir os noticiários, ocorreu-me a palavra outra vez: não é que, nessas andanças políticas, grumos é o que mais há? Será que as águas estão cada vez mais salobras? Sonhávamos nós com aquela abundante espuma das banheiras hollywoodescas, sedutora, malandreca, hilariante!… E só nos saem é grumos! As fitas são outras, bem no sei. Uma seca!

                                                    José d’Encarnação

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 220, Maio de 2017, p. 10.

3 comentários:

  1. Teresa Silva 9/5 às 10:44
    O Português tem palavras tão lindas!

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  2. Ana Maria Gil
    O texto tem descrições que me fazem lembrar o meu imaginário de infância no meu Ribatejo.
    Parabéns pela reflexão 👏👏

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  3. Firmino Silva
    Na espuma das coisas, na espuma da vida, grumos é o que não falta...!
    E se eu percebo, de grumos, de espumas, depois de tanto ter passado pelas águas salobras, tão diferentes das suas congéneres das nascentes das serras.
    Atravessando o Mar Arábico, o Índico, e o Mar Vermelho sob uma infame canícula, com mais 2400 companheiros vindos das plagas do Império já em início de decomposição, tomava-se banho com uma água supostamente dessanilizada pelas estruturas do navio, o velho Niassa, mais apropriadamente chamado a Barca do Inferno.
    O sabão com que masturbávamos o desejo de espuma, não fazia grumos, na verdade não fazia nada, a gordura e o ácido da sua formulação esbarrava na resistência coriácia do cloreto de sódio, desfazia-se apenas em coisa nenhuma.
    Recordo, sessenta e um anos depois, o verso escrito a lápis grosso na porta de um dos chuveiros por um inspirado poeta:
    - " Neste chuveiro marítimo,
    Toda a mania se acaba,
    Todo o valente dá traques,
    Todo o cobarde se Kaga!
    Kaga, para quem não se interessa por estas coisas navais, era o nome de um dos Porta aviões japoneses afundados pela aviação americana na Batalha de Midwai, no Oceano Pacífico em 1942.
    Em lugar das coisas boas que almejamos, mais do que a água, seja a salobra do Ribatejo, a mal dessanilizada do Índico, e a da restante vida, o que nos vem ao nosso encontro são grumos! Que são aqueles que o caro José d´Encarnação apreenderá nestes dias.

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