terça-feira, 16 de maio de 2017

Uma rapsódia de… murros no estômago!

              Não fica mal à sanfona que, de vez em quando, ensaie uma rapsódia. Normalmente, escolhem-se trechos que andam no ouvido da gente, que facilmente se interligam e o pessoal alegremente os cantarola.
            Pois decidi-me hoje por uma rapsódia de factos que andam no ouvido da gente e que facilmente se interligam. Só com uma diferença: não há alegre cantarolice.
            O horror do jogo da «baleia azul»; o estranhíssimo complexo de Diógenes, que leva indivíduos a amontoarem tudo e mais alguma coisa em casa e aí mal se podem mexer e tudo fede que tresanda e eles não conseguem libertar-se de tanta porcaria; a administração, nas prisões, de medicamentos fora de prazo, trazidos não se sabe donde…
            Que rapsódia é esta, senhores?
            Quis sair desse ritmo e fui ao baú dos «assuntos pendentes». E que me saltou à vista?
            1 ‒ A carta que o actor Ruy de Carvalho, aos 86 anos (eu tive o privilégio de estar na festa dos seus 90, mui condignamente celebrados a 1 de Março passado), escreveu aos «senhores ministros» e onde vitupera, a dado passo:
            «Hoje, para o Fisco, deixei de ser Actor… e comigo, todos os meus colegas Actores e restantes Artistas destes país – colegas que muito prezo e gostava de poder defender.
            Tudo isto ao fim de setenta anos de carreira! É fascinante. Francamente, não sei para que servem as comendas, as medalhas e as Ordens, que de vez em quando me penduram ao peito?
            Tenho 86 anos, volto a dizer, para que ninguém esqueça o meu direito a não ser incomodado pela raiva miudinha de um Ministério das Finanças, que insiste em afirmar, perante o silêncio do Primeiro-Ministro e os olhos baixos do Presidente da República, de que eu não sou actor, que não tenho direito aos benefícios fiscais, que estão consagrados na lei, e que o meu trabalho não pode ser considerado como propriedade intelectual.»
            Olha: acabou-se o espaço! Apetecia-me ir por aí adiante, a revolver o baú e a dar mil e um exemplos de como um homem de cultura (professor, escritor, pintor…) está, em termos financeiros, abaixo do canalizador ou do electricista, por exemplo. Acedes ao pedido da Câmara Municipal para fazer uma conferência da tua especialidade: quanto te pagam? Solicita a Câmara o serviço de um canalizador, caso o não tenha – e nem pestaneja a pagar a deslocação e as ‘horas’ a peso de ouro… Aliás, também no «Sexta às Nove» da RTP 1 do dia 5, se falou nisso…
            Fica o resto da rapsódia para outra vez! A fim de que a esperança não morra!

                                                         José d’Encarnação

      Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 708, 15-05-2017, p. 11.

2 comentários:

  1. Isilda Marques
    Um ser autêntico, talentoso, simples, inteligente e sábio. São estes seres que fazem falta à nossa sociedade, ao nosso país, ao mundo e nos fazem ter esperança. Raros... Mas felizmente existem, professor. Grata por mais um texto que me encheu o coração. Um abraço com todo o respeito e admiração.

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  2. Maria José de Matos
    O tempo é de fogo-de-artifício... O país não gosta de pensadores! Não lhe dá jeito! É preciso passar da indignação à revolta!

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