sexta-feira, 27 de maio de 2022

Viajar de comboio!

O abandono   
    Custa-me passar ali e ter de atravessar carris quase enterrados. É à entrada de Montoito, uma aldeia do concelho do Redondo, distrito de Évora. Era uma linha férrea que morreu, porque, um dia, uns senhores de Lisboa acharam que não merecia a pena manter essa ligação ferroviária para servir umas quantas aldeias dispersas pelo interior do País.
            Custa-me ir de Coimbra à Lousã, circuito até há uns anos servido por linha-férrea (o «ramal da Lousã») que, a mando dos senhores de Lisboa, rapidamente se levantou, sem que houvesse alternativa do transporte para tantas localidades dos arredores da cidade.
            Custa-me ir pela autoestrada do Sul e passar por cima da linha que ligava Beja ao Algarve e que também foi desactivada.
            Hoje, os governos «torcem a orelha e não deita sangue» – como se diz em gíria , porque, asneira feita, não sabem como a hão-de emendar. Ou melhor, já viram que têm de voltar ao tempo antigo, pois, se outrora o comboio era o meio de transporte mais barato, agora, com todas as restrições energéticas, ainda o será mais!
 
2.      Evocações
            Como moro em Cascais, sempre me habituei a ir de comboio para Lisboa. De resto, esta linha – que já chegou a ser terminal do Sud-Express! – reúne as condições ideais e muitos guias turísticos a recomendam. Sou, porém, natural do Algarve e desde pequeno que ouvia falar do «comboio-correio», a carvão. Era o comboio mais usado de Lisboa para lá. Viajava-se a noite toda, para, no dia seguinte, o correio chegar às estações.
            A palavra «estações» lembra-me a necessidade de explicar que, neste caso, não se tratava das estações de caminho-de-ferro (as gares…), mas das estações de correio. As estações requeriam, pela sua importância, que todos os comboios lá parassem, ao contrário dos apeadeiros, simples plataformas onde só paravam os comboios que assim possibilitavam a ligação entre aldeias. Hoje, com o desprezo a que se vem votando o comboio, até há estações que mais parecem apeadeiros, pois não têm bilheteira, não têm telefone, não têm pessoal, não têm café, não dispõem de serviço de táxis…
            Falei do Algarve. É lá possível que se não privilegie a ligação ferroviária (ainda em via única e não electrificada!) paralela à costa, para servir as praias algarvias? É lá possível que uma cidade da importância de Silves – ela que já chegou, em tempos idos, a ser a sede episcopal algarvia! – não ter serviço de ligação ao centro urbano, uma vez que a estação fica a distância considerável?
            E, a propósito de estações e dos comboios e suas categorias conforme a velocidade para que foram pensados – na actualidade, há o alfa, o intercidades, o regional, o urbano, o comboio de mercadorias (qual recoveiro)… –, há a história que compara a vida do Homem a um comboio. Pelos vinte anos, é um comboio urbano: pára em todas as estações; dos 30 aos 40, é regional, pára nos aglomerados mais movimentados; dos 40 aos 50, é intercidades, porque só pára nas estações principais; dos 60 aos 70/75, é alfa, está cheio de pressa e só pára uma ou duas vezes no percurso; dos 75 em diante, não circula, vai para o estaleiro!...
 
3.      De Lisboa para Coimbra
            De Lisboa para Coimbra, onde trabalhei a partir de 1976, sempre privilegiei o comboio. Não havia já a 3ª classe, de bancos de madeira, que ainda apanhei na linha de Cascais, e de bilhetes bem acessíveis; mas eu só muito tarde comecei a ter posses para viajar em 1ª e no foguete, nome por que era conhecido o antecessor do alfa. Viajava em 2ª, em compartimentos de 8 passageiros. Ouvia, por isso, habitualmente, as conversas mesmo entre pessoas que acabavam de travar conhecimento e a quem uma viagem sem conversa, sem possibilidade de contar de vidas e de doenças não tinha graça nenhuma! Tinha dificuldade, eu, em entabular conversação. Preferia preparar as aulas, ler um livro, escrever o rascunho dum artigo; nem sempre, todavia, me escapava e lá tinha de ouvir e de trocar impressões.
Sempre me agradou muito essa viagem, pelo tempo de que dispunha – primeiro, mais de três horas, agora duas horinhas bem rápidas – para me encontrar comigo mesmo, para observar os outros, para me deliciar com a paisagem. Um dos meus recentes livros de crónicas tem mesmo um título baseado na observação da lezíria ribatejana assim ao romper da manhã, quando o Sol acabara de nascer: sob as árvores, um manto branco, a geada que só mais tarde o astro-rei lograria derreter – e daí o título Geada na Sombra!
 
4.      Os ferroviários
            Uma das estações – essa de paragem obrigatória – o Entroncamento. Nasceu logo na 1ª metade do século XX, quando aí se fez o entroncamento da linha que daí seguia para a cidade da Guarda (a Linha da Beira Baixa) com a Linha do Norte, que liga Lisboa ao Porto. A maior parte da sua população original está, pois, ligada aos mais variados ofícios que o comboio alimenta, os ferroviários, desde funcionários da companhia (hoje chamada CP - Comboios de Portugal) até ao mais modesto dos operários: maquinistas, revisores, fiscais, agulheiros...
             Por falar em operários, importa não esquecer que é inglesa a invenção do comboio; por isso, os comboios circulam pela esquerda, à moda inglesa, e o nome deriva de ‘convoy’, que também designa a força armada que protege, por terra ou por mar, pessoas ou mercadorias.
E porque é que eu relacionei operários com ingleses? Porque me apareceu, há anos, a palavra ‘chulipas’ para identificar as travessas de madeira de pinheiro (agora são de cimento) que uniam os carris. Palavra estranha, essa, se não a relacionarmos com a sua função de sobre elas, as chulipas, repousarem (dormirem…) os carris. Eram os… sleepers (de sleep, sono, dormir)! Os dormentes!
            E carris faz-me lembrar «bitola», que é a distância entre um carril e outro. Usa-se em Portugal e em Espanha a bitola ibérica, de 1668 milímetros de espaçamento, como ficou convencionado a partir de 1955, diferente da europeia, a bitola-padrão, que é de 1435 milímetros. Diz-se que era também uma forma de os dois países estarem mais alheios a possíveis invasões europeias; na verdade, ir, por exemplo, de Lisboa a Paris no Sud-Express implicava, até não há muito tempo, fazer com que as carruagens-cama tivessem, de mudar de bitola, em Hendaya...
 
5.      As estações floridas
            Não quero terminar sem uma palavra ao período áureo – a meu ver – do caminho-de-ferro em Portugal, aí pelas décadas de 40/50 do século passado.
O tempo dos concursos das estações floridas, instituídos em 1941 pelos servilços de turismo e propaganda do Estado Novo, com o objetivo de «estimular o bom gosto na ornamentação floral das estações dos nossos caminhos de ferro e revelar aos turistas estrangeiros um aspeto bem caraterístico do nosso temperamento artístico e do nosso proverbial bom gosto»!
O tempo em que se primou pelo embelezamento das fachadas com magníficos azulejos, que despertam ainda hoje a admiração de quantos não andam com pressa e podem deter-se momentos diante deles. A estação de S. Bento, no Porto, vem em todos os guias turísticos. E não poucos mostrarão também os azulejos da estação do Pinhão, na Linha do Douro.
Ah! a Linha do Douro, ao longo do rio, na soberba contemplação dos vinhedos em socalco, verdes no Verão, de um quente castanho-amarelado no Outono!... Ah! A Linha da Beira Baixa, também ela ao longo do curso doutro grande rio, o Tejo, a permitir o suave deslumbre da lezíria ribatejana e a passar lá mais adiante, pela altaneira imponência das Portas de Ródão, ninho de grifos, águias e cegonhas!... Paisagens que só da janela do comboio se podem longamente apreciar!

                                                           José d’Encarnação

Ponte ferroviária no Douro

Locomotiva na Linha do Douro

Pormenor da estação do Pinhão


Comboio na Linha do Douro

Chegada de comboio à estação do Pinhão

Azulejos na estação de S. Bento (Porto)

 

Texto bilingue (em português e alemão) publicado em Portugal-Post (Correio Luso-Hanseático) [Hamburgo], 71, 05/2022, p. 34-43.

2 comentários:

  1. Voltarei aqui para reler e reapreciar este fantástico texto sobre a experiência de viajar de comboio. Tantas ramificações o tema permite, como os ramais que ainda existem e mais os que a ignorância permitiu que se abandonassem. Depois de usados com tanta comodidade ( e menor poluição) pelas populações, ou de interrompidas as obras já em andamento e com avultadas quantias gastas, um dos meios de transporte mais relaxantes para ligar pessoas a lugares, também tem sido prejudicado pelo "progresso", como tão bem salienta o texto. Tenho de voltar...Nem sequer preciso de apanhar comboio.

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  2. Não sei se fui bem explícita no comentário anterior, por isso aproveito a releitura para marcar o que queria dizer:depois de tantos benefícios ter prestado, com eficiência e zelo, é lamentável, como sugere José d´Encarnação, ver linhas de comboio enterradas no Alentejo, obras interrompidas entre Coimbra e Lousã, ou ligações abandonadas como a de Beja ao Algarve. E volto a dizer que foi um prazer apreciar este texto.

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