Não é apenas Agatha Christie que tem razão quando afirmou que o marido continuaria a gostar dela porque, sendo arqueólogo, gostava das «coisas velhas»; também parece verificar-se como verdadeira a realidade de o arqueólogo, a determinado momento, também se sentir poeta. É, sem dúvida, esse contacto maior com a Natureza, a terra que lhe passa pelas mãos, os objectos que vai exumando, esse diálogo com os que, séculos e até milénios, por ali andaram e deles se encontram os vestígios...
São,
pois, vários os arqueólogos portugueses que publicam livros de poesia. Eu
tenho-me na pele (fraca) de arqueólogo, não sou poeta, mas gosto de escrever e,
sobretudo, de dar a conhecer o que de interessante outros escrevem.
Atrevi-me,
em 2004, a
tecer considerações sobre livro de poemas de um arqueólogo ilustre e enviei-lhe
previamente o texto, na intenção de que ele diligenciasse, se achasse bem, para
a sua publicação num jornal local. No que eu me fui meter! Desancou-me o senhor
de cima a baixo, porque eu não percebera da sua poesia. Remeteu-me para outros
livros seus, para eu (só depois!) me poder abalançar a fazer uma apreciação crítica
válida a este. Precisava de ter lido todos os outros e Fulano (nome de um
professor igualmente ilustre como ele) é que compreendia bem «o profundo» da
sua poesia: «Acho que é importante perceber o mais profundo da minha poesia, e
por isso também é preciso ler os outros meus livros…».
Agradeci-lhe
o atestado da minha burrice e guardo religiosamente, qual autógrafo, os seus
comentários manuscritos ao texto dactilografado que eu lhe remetera.
Sou, porém,
reincidente e ouso, por isso dar conta de uma outra iniciativa congénere: de
uma arqueóloga que também decidiu passar a escrito o que, ao longo dos tempos,
lhe foi passando na alma, espécie de retrato de um sentir feminino.
ooo
O livro À Flor da Pele, da autoria de Ana
Alexandra Luz Resende, publicado em papel e em formato digital por Corpos
Editora (nº XIII da Colecção Wordl Art Friends: www.worldartfriends.com) foi
apresentado na Biblioteca Municipal de Loulé pela Dra. Idália Farinho,
louletana dos quatro costados, poetisa e grande estudiosa dos costumes e das
manifestações literárias do Povo.
A autora vive
em Loulé há vários anos e propôs-se mostrar, neste seu primeiro livro, «o
sentir feminino da adolescência à maturidade». Quer isso significar, antes de
mais, que se trata de uma ‘compilação’ (como a autora a designa) do que foi
escrevendo. Ainda que não datados e certamente não incorporados aqui por ordem
cronológica, sente-se que há sonhadora adolescência, em que se é «beijo de
rosas / que se requebra / sob o hálito do orvalho», e há a experiência da
maturidade, patente, por exemplo, logo na dedicatória «a todos aqueles que
ainda têm a coragem de deixar fluir a alma à flor da pele num mundo agredido
pela indiferença» – e esta frase constitui, sem dúvida, não apenas a razão de
ser do título, mas também a vontade de, através do lirismo, por exemplo, da
entrega à pessoa amada e da dedicação aos outros, se lutar contra a indiferença
generalizada: «Menino da rua! / Criança perdida / Rumando sozinho / na estrada
da vida!».
E, pelo
caminho, vão-se retratando as angústias («Quero ser uma rosa e sou um espinho»;
os desânimos: «Que esta porta que se fecha / Nunca mais se abrirá»; as
ternuras: «Como o mar que se deita com a areia e lhe segreda ao ouvido»; os
murmúrios de um pesar: «Pena de quem vive a vida a fugir»; os amores que se
desejam eternos: «Mas se só um dia mais bastasse / Para se ter o que se quer de
tal maneira / Que esse dia então jamais cessasse / Ou calasse o tempo a vida
inteira!»; os vazios: «Beijas os meus lábios mas não sentes meu sabor!»…
Um livro,
enfim, para ter na mesa-de-cabeceira. 51 poemas a saborear de vez em quando,
antes de adormecer, a deixar-se enlevar na melodia das palavras, em jeito de
meditação quotidiana de uma vida que queremos agarrar com ambas as mãos.
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, 4-11-2012 [agora inacessível].
Que delícia de texto! Pela introdução e pela reincidência. Fora o distinto autor um político, e ganharia pontos como persuasor, aqui na inofensiva e meritória atitude de enaltecer a poesia.
ResponderEliminarO primeiro visado era difícil... E eu sem problema que escrevam sobre os meus livros! Lá está, o não ser famoso/a facilita o caminho... Muito grata por mais este excelente pedaço de prosa com a notinha de humor.