segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

A inveja, a cobiça, a delação

            Estavas, linda Inês, posta em sossego, de teus milhares antevendo o doce fruito, quando uns miseráveis queixinhas puseram a boca no trombone, deitaram tudo a perder e foi o escarcéu que se viu…

Já na Guerra dos Cem Anos (1337-1415), entre a Inglaterra e a França, uma outra heroína, Joana d’Arc (1412-1431), os soldados seguiram-na com fervor, até que alguém (sempre a inveja!...) ciciou que havia bruxaria pelo meio e a pobre acabou por ser queimada na fogueira.
Do cavalo-marinho do pai escapou à justa o Toninho, de 9 anos. Combinou com a Maria encontrarem-se naquele recanto fofo da seara do Ti Alfredo. Encontraram-se, deve ter sido bonito para a idade, mas logo adregou passar por perto uma vizinha, que viu os dois enlaçados e correu a meter tudo nas saias da mãe da Maria. O Toninho jurou a pés juntos que até nem conhecia bem quem era essa Maria e, não senhor, nada fizera. O pai sentenciou-lhe então, pela primeira vez, «brincar, brincar, mas na gaita não tocar!». E perdoou-lhe.
 
 
 
Nos tempos da Inquisição, também era assim. Não de guerras nem de amorezinhos em loiras e mornas searas, mas de milhares como os de Inês. Aquele marmanjo está a sair-se demasiado bem nos negócios, o melhor é a gente acusá-lo de ser cristão-novo e de andar por aí em rezas às escondidas. Se calhar, até alguns dinheirinhos dele nos podem calhar pela denúncia. Atire-se o homem prá fogueira!
E há também aquele outro senhor, o da guerra santa – como a dos cruzados da Idade Média – que já o disse alto e bom som: «Descubram-me os traidores! Digam-me já quem é que anda praí a murmurar contra a minha guerra! Eu recompenso!».
 
 
 
Enfim, o estilo de todos os tempos!
 
        
  Lançou-se a minha amiga Maria Federica Petraccia, da Universidade de Génova, à descoberta de como é que esses guisados se cozinhavam na Roma antiga. Daí nasceu o livro Indices e Delatores nell’Antica Roma. Indices eram, ao que parece, os que, tendo participado no crime, acabavam por fornecer dados para que o processo chegasse ao fim e eles ficassem ilibados ou, pelo menos, com penas aliviadas. Delatores, ao invés, eram os que andavam de fora a farejar, nada os havia prejudicado, mas decerto lhes caberia algum provento se denunciassem o escravo fugitivo, as heranças ocultas ou sem pretendentes…
            Tem-se mesmo a ideia, escreve Federica Petraccia, que uma forma de então se andar protegido era confiar-se a informadores profissionais, esses delatores. No reinado do primeiro imperador, Augusto, os delatores foram extraordinariamente eficazes, sobretudo para revelarem tentativas de assassinato do imperador e para controlarem as multidões. Houve inclusive uma lei, a lex Iulia maiestatis, que estipulava, no ano 8 antes de Cristo, ser crime contra o Estado a injúria verbal ou a simples calúnia contra o Príncipe ou, ainda, a difamação dos membros da sua família. (¿Não se condenava recentemente quem ousasse pronunciar a palavra «guerra»?).
            O segundo imperador romano foi Tibério, reinou de 14 a 37 da nossa era. No seu tempo, «as acusações pululavam nos lugares públicos e nas casas particulares e até os senadores mais respeitáveis se abaixavam às mais vergonhosas delações, alguns abertamente, muitos às ocultas». Havia uma relação estreita entre o imperador e os delatores, uma relação somente conhecida e documentada nos segredos da chancelaria imperial, «uma espécie de do ut des [«dou-te para que tu me dês», ¿onde é que eu já ouvi isto?...], um instrumento de excepcional pressão política nas mãos do imperador, uma forma de obter reconhecimentos, promoções e riquezas para os segundos».
            Refere-se Federica Petraccia a dezenas de casos ocorridos nesse (já longínquo, repita-se…) tempo dos Romanos. Aludo a três, de índole diversa, só para exemplificar.
            Um, de aspecto agradável, do ano 362, a excepção para confirmar a regra. Dois emissários imperiais que haviam sido dispensados do serviço prometeram ao imperador Juliano revelar-lhe o esconderijo de um certo Florêncio, na condição de o imperador os readmitir. E, aqui, o príncipe não esteve com meias medidas: chamou-lhes delatores e disse não ser conveniente para um Príncipe deixar-se levar por informações indirectas para encontrar quem se escondera com medo de ser assassinado.
            Um outro, de contexto singular. O ex-pretor Paulo estava num banquete e tinha no dedo um camafeu com a efígie de Tibério. A dado momento, já com os copos, pegou num urinol. O caso foi observado quer por Marão, um dos delatores mais famosos da época, quer por um dos seus escravos. Este último apressou-se a tirar-lhe o anel e enfiou-o no dedo, a fim de tornar inconsistente a acusação, que Marão já estava a preparar, de que Paulo encostara às virilhas a imagem imperial!...
 
  
 
           O terceiro faz lembrar a nossa constante busca de um bode expiatório. Corria o ano de 472 a. C. Pairava sobre Roma uma pestilência inaudita: as mulheres grávidas morriam e davam à luz fetos mortos. Quando se haviam esgotado todos os normais procedimentos de expiação, há um escravo que segreda aos pontífices que a vestal Orbínia perdera a virgindade a que estava obrigava e continuava a presidir, assim impura, às celebrações sagradas. Julgada como culpada, vergastaram-na, arrastaram-na através da cidade até ao sepulcro. Um dos dois cúmplices suicidou-se, o outro foi punido como era de lei – e a pestilência acabou!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 02-01.2023: https://duaslinhas.pt/2023/01/a-inveja-a-cobica-a-delacao/

 

3 comentários:

  1. Luis Torgal
    2 de janeiro de 2023 12:39:
    Obrigado, Caro Zé, por essa sugestão de leitura, acompanhada de um delicioso texto. Eu, que também estudo a Inquisição (será tema do meu próximo livro), sei muito bem o que é isso. E recordo que um dos delatores de Manuel Fernandes Vila Real foi um franciscano que estava aqui no convento dos Olivais, em Coimbra, Frei António de Serpa, que Vila Real elogiou no processo, considerando-o uma boa alma. Enfim, cuidado com os "homens bons" e as " boas mulheres".
    Grande abraço
    LRT

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  2. César Correia
    2 de janeiro de 2023 14:37:
    Muito bom!
    A ler a história antiga e a cachimónia a puxar-me para a actualidade... Deve ser obra do bestunto no seu melhor...
    Abr

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    1. Amei e sorri com a "cachimónia" "Sede das capacidades intelectuais, da memória, das emoções e das decisões"
      Maria Helena.

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