sábado, 21 de janeiro de 2023

O deus das duas caras

      
           Sempre achei piada àquela engenhosa representação: dum lado, a cara dum velho barbudo e desgrenhada cabeleira; do outro, o jovem imberbe. Deram-lhe os Romanos o nome de Jano e tinha o condão de representar o ano velho e o ano novo.

Do seu nome terá vindo «janua», ‘a porta’, e o adjectivo «Januarius», nome próprio (Januário) e também ‘Janeiro’, nome do primeiro mês do ano, o que abre o ciclo anual. Porta, então, que se fecha, a do ano findo; e porta escancarada, a do ano a começar.
Escancarada para quê? – gostaríamos de saber. E nunca saberemos com antecipação.
E quem será o porteiro? Sempre me encantaram os porteiros de libré: dum hotel, duma casa nobre, dum banco, dum ministério… Sempre atenciosos, sobretudo os dos hotéis, que os demais se importam mais em dar lustre aos seus galões, raramente esboçam sorriso, fazem-se caros. Só lá entra quem eles autorizem, pois então! Os dos hotéis não: apressam-se, solícitos, a abrir a porta às madamas, afáveis, sabem cumprimentar em várias línguas. Uma sedução de emprego!
Direi que, por falar em portas, a que, até agora, mais se seduziu, pelo seu significado histórico e sua inigualável beleza foi a da antiga Babilónia, que se reconstituiu no museu Pérgamon, de Berlim. A gente avança devagarinho pela avenida faustosa e dá com a porta no fim. Maravilha!...
Palmilhando outras artérias, encanta-me também, confesso, ler, na minha carta de condução, que o meu concelho é Alportel. Não deve ter havido tempo nem disposição nem, se calhar, espaço para porem, como deveria ser, S. Brás de Alportel. E não haverá duas opiniões: Alportel quer dizer isso mesmo, a porta. A porta para lá – a serra, o Alentejo, a capital longínqua; a porta para cá – até à beira da Ria Formosa.
Precisamos, porém, de porteiros. Com uma função diferente da habitual. Abrirem portas, sim, para que entrem; e saberem criar argumentos convincentes para que não haja portas de saída.
Não, «Janus» não pode mesmo ser divindade a destronar o nosso santinho S. Brás. E vamos prometer a este (pomos-lhe umas velinhas!) ser de Alportel bons porteiros, de libré, para atrair pessoal e seduzir com cara de Jano jovem – afável, voluntarioso, acolhedor!...

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 314, 20-01-2023, p. 13.

1 comentário:

  1. Indivíduo de duas caras não costuma ser confiável, mas na mitologia um deus assim, Janus, só podia inspirar mais força: ter o poder de fechar (o velho) e de abri r(o novo) era ter o dom de dominar a mudança, única certeza da vida.Abrir portas, depois de fechadas aquelas que se tornavam obsoletas. E então Alportel, na sua herança árabe ou mudéjar, também significa a porta que divide o interior do mar...Muito bem visto.E eu sempre a aprender com estes textos.

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