quinta-feira, 16 de março de 2023

Contemplar

             Naquela manhã, surpreendi-me. Abri a janela, a fim de, em acção de graças, saudar o alvorecer. Na altíssima araucária do jardim vizinho poisava um bando de rolas. Bem lá nos ramos do cimo, serenas, como que também elas agradeciam ter um poleiro assim, altaneiro e tranquilo, nesse dia sem uma aragem sequer.

Gosto de as contemplar, as araucárias. Há uma de cada lado, em jardins diferentes, como que a ladearem o meu ângulo de visão para o dorso verde-escuro da serra de Sintra. Aquela sensação de termos os pés em terra e a vista que se espraia e se eleva. No sossego da aurora, as luzes acabaram de apagar-se, os carros ainda não deram em mostrar-se sôfregos na pressa de quem nem tempo teve de saborear o pequeno-almoço e já se apoquenta com não chegar atrasado. Ainda não. A correria só daqui a minutos chegará.
Fui educado a ter, pela manhã de cada dia, esse tempo de contemplação interior, a projectar as horas seguintes; mas também a contemplação do exterior enriquece. Um olhar de ver, o sabor inusitado de nos sentarmos no corredor de uma grande superfície. O mundo à nossa volta e nós a saborear os momentos, a sentir a pulsação das veias, a dominar a respiração e, até, a dar caminho ao pensamento, não o deixando por i à rédea solta, que esse mundo traz mensagens a reter…
Os rostos, os trajos, as tatuagens. Saltam estas à vista no pouco ou no muito que os corpos deixam ver. Nos braços, nas pernas, nos peitos, em marota sedução, por vezes. A deixar-nos brejeiramente sonhadores: se é assim o que está à mostra… E, de repente, aquela recordação dos anos 60 e 70, as primeiras tatuagens, as dos soldados do Ultramar: «amor de mãe», «batalhão X», «Nambuangongo 1961»… Cada tatuagem, uma história, um desejo, uma mensagem. A mensagem que se pretende transmitir e a que os outros imaginam.
E as expressões faciais. Ali, um rosto descontraído e feliz; acolá, um carrancudo a carregar, qual Atlas gigante, o peso todo do mundo! O passo apressado ou de lazer. As roupas – sempre acredito que os senhores da moda jamais vão ter mãos a medir nem a imaginação alguma vez lhes dará tréguas. Para conforto de quem veste, para sadio entretenimento de quem pode ver. Na lembrança daquela frase à entrada do Alhambra: «Dai-me uma esmola, senhora! Que nada há mais triste no Mundo do que ser cego em Granada!».

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 840, 15-03-2023, p. 10.

7 comentários:

  1. Dale limosna mujer,
    que no hay en la vida nada
    como la pena de ser
    ciego en Granada.

    Francisco A. de Icaza

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  2. Devaneios contemplativos inspirados em vida longa, de observador atento e sensível ao tempo e modo do mundo d’ontem e d’hoje!!!
    Parabéns pela excelente reflexão!

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  3. César Correia 16 de março de 2023 15:31
    ... contemplei o "Contemplar" e gostei. Muito bom!
    Obg.

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  4. Interessante texto rematado pelo poema do mexicano-espanhol, com nome de rua de Madrid e em Granada, onde a sua aristocrática e jovem esposa crescera. Para ver, é preciso tempo para olhar com calma...

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  5. Belo texto, meu amigo. Eu tenho uma araucária no jardim... mas sinto-me miseravelmente cega em Granada. Beijo grande

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  6. De Regina, 17/03/23 12:37
    Muito obrigado pela partilha. Um belo texto que, mesmo parecendo “superficial", encerra um conteúdo bem profundo. Leva o leitor a meditar.

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