quarta-feira, 24 de abril de 2013

O saloio e a sua identidade

            No passado dia 18, Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, na Sociedade de Instrução de Janes e Malveira, apresentou-se o livro da autoria de Maria Micaela Soares, antropóloga da Assembleia Distrital de Lisboa (mas residente em Cascais), intitulado «Saloios de Cascais – Etnografia e Linguagem». ISBN: 978-972-637-249-3, 488 densas páginas ilustradas, encadernação magnífica, mui adequada maquetização da responsabilidade de Fátima Lisboa.
            O salão de actos da colectividade foi pequeno para acolher tanta gente que desta sorte também quis manifestar o seu apreço por tão louvável e singular trabalho.
            Diga-se, para já, que não poderia ter sido mais bem escolhido o local para esta apresentação. Já quando, no último trimestre de 1989, a Câmara Municipal, em estreita colaboração com a Associação Cultural de Cascais, realizou a exposição «Um Olhar sobre Cascais através do Seu Património», foi justamente em Janes que se apresentou o «núcleo do mundo rural», dadas as características genuinamente saloias que ainda por ali se mantêm.
            Presidiu à sessão a Senhora Vereadora da Cultura, Dra. Ana Clara Justino, que, após salientar, com aplauso, o trabalho de toda equipa (coordenada por Conceição Santos) que eficazmente colaborara na edição, deu a palavra ao apresentador oficial do livro, o Professor Doutor Virgolino Ferreira Jorge, que começou por sublinhar quão injusto era o uso depreciativo do termo ‘saloio’, com o significado de ignorante, rural, pouco civilizado, pois, na verdade, se trata de uma designação de teor etnográfico que já vem do tempo dos árabes para identificar os camponeses naturais dos arredores de Lisboa e que justamente a abasteciam de muitos dos produtos hortícolas, e não só, de que a capital carecia.

Mais de meia centena de informantes
            Com base em minuciosa recolha feita junto de informantes, “todos para além dos setenta anos, alguns octo e nonagenários, entretanto, vários já falecidos”, acentuou Virgolino Jorge tratar-se de uma tarefa que «implicou anos de esforçadas peregrinações pela cercania aldeã da vila, ouvindo, entrevistando e recolhendo testemunhos directos feitos da palavra, do silêncio e do gesto», «complementada com uma paciente investigação documental e arquivística e uma perseverante tarefa de cela, para reflexão e escrita, redigida com o acre da crueza que foi escutada ou lhe foi relatada em primeira pessoa. Daí que o "eu" narrativo do texto e do contexto operativo de Saloios de Cascais corresponda a um saber e a uma experiência feitos e insuspeitos, adquiridos sem distanciamentos, e esteja plenamente justificado», sublinhou o apresentador.
            «Exaustivo labor beneditino», que obteve concretização num «estudo sério e inédito», enriquecido por oportuno «glossário da fala saloia» e contendo, como o próprio título indica, duas partes: a primeira dedicada «aos factos etnográficos», a segunda aos «valores linguísticos».
            Na Etnografia, os capítulos são: «nascer saloio» (predições acerca das qualidades do nascituro, por exemplo), «aspectos da «vida do adulto», «vida económica» (a faina agrícola, o trabalho da pedra e a preparação da cal, a lavagem de roupa alheia…), «vida imaterial» (dança, canto, religiosidade…), «literatura popular» (romanceiro, cancioneiro, adagiário, adivinhas, anedotas, contos e lendas).
            No que à linguagem diz respeito, são abordados aspectos gramaticais (fonética, morfologia e sintaxe), assim como particularidades sintáctico-estilísticas, formas de tratamento social (saudação, despedida, cortesias e descortesias), expressões idiomáticas, onomástica (nomes e alcunhas), a toponímia. No final (p. 464-485), exaustiva bibliografia.

Obra para ler e reler
            No que concerne, por exemplo, aos pequenotes, não quis o Professor Virgolino Jorge deixar de falar das referências «ao banho higiénico das crianças e às finalidades terapêuticas da “auguinha de rabo lavado”, aos sinais e predições acerca do carácter dos nascituros, indicadores de felicidade (chorou na barriga da mãe) ou de infortúnio (Dês que o assinalou algum defêto l’encontrou), e à invocação para afastar as crianças de males perniciosos (benza-te Deus!). Lembram-se algumas enfermidades que afectavam os meninos de então e obrigavam a tratamentos, os quais eram rematados com uma súplica final (Dês te dê a bertude qu’ê já fiz o que pude).»
            Enfim, uma obra para ler, reler e amiúde consultar, porque de tudo aí vai encontrar-se. Ou, para usarmos, mais uma vez, das palavras do apresentador: «Entendo o livro de Maria Micaela Soares, substancialmente, como uma impressiva lição de arqueologia do saber; de um saber inspirador e deliberativo, tributário da capacidade e do talento intelectuais desta reconhecida Autora, para multiplicar novos olhares sobre o passado cultural da região saloia cascalense.»
            Às 18.47 horas, a Dra. Micaela começou assim: «Saloios, amigos, informantes – eu fui vossa aluna!». E, em vinte minutos, foi contando da experiência vivida para levar a cabo a concretização deste «livro de memórias ressuscitadas; explicando que «rio» era, para o saloio, não apenas o ribeiro mas também aquilo a que ora se chama ‘tanque’; que nesses recuados tempos se «cavava uma manta para bacelo» (ora vão lá descobrir o que isto significa!...); que as refeições eram, amiúde, apenas «de pão e navalha»; que esses «depoimentos duros, rudes e dolorosos» importa pensar neles, reabilitar o termo ‘saloio’, um homem que também gostava de falar em verso («Minha mãe mandou-me à água / […] / Mande-me ela namorar / Verá se eu não tenho jeito!»)…
            O presidente da Câmara aplaudiu a iniciativa, mormente porque ela vem ao encontro do que hoje mais preconizamos: a salvaguarda da nossa identidade, do nosso património cultural imaterial, concluindo com uma palavra de esperança.
            Encerrou a sessão, eram 19.20 horas, a Senhora Vereadora, que agradeceu a presença de todos, não querendo deixar de fazer alusão aos cortinados de chita das janelas do salão de actos, tão genuinamente saloios e, por conseguinte, bem enquadrados em tão agradável e instrutiva sessão.

Publicado em Cyberjornal, 2013-04-22:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=18173&Itemid=30

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