sexta-feira, 3 de maio de 2013

Em torno da identidade saloia

            Três cerimónias se concretizaram nos últimos dias a merecer atenção.
            Em primeiro lugar, no dia 8 à noite, reflectiu-se, no Centro Cultural de Cascais, acerca de perspectivas para as comemorações dos 650 anos de elevação de Cascais a vila, a realizarem-se no decorrer de 2014. No dia 18, Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, na Sociedade de Instrução de Janes e Malveira (fundada a 4 de Janeiro de 1938), apresentou-se o livro, de Maria Micaela Soares, Saloios de Cascais – Etnografia e Linguagem. No sábado, 20, na sede do Grupo de Instrução Musical e Desportivo de Abóboda, fundado em 1 de Abril de 1930, outro livro se deu a conhecer: Nomes ou Alcunhas das Pessoas dos Meus Livros, da autoria de Celestino Costa.
 
As comemorações dos 650 anos
            Uma sessão que teve objectivo semelhante à que ocorreu há 50 anos atrás, quando o presidente da Câmara, Eng.º António de Azevedo Coutinho, convidou entidades e personalidades para uma primeira reflexão acera do que poderiam vir a ser as comemorações do VI Centenário.
            Depois de Carlos Carreiras ter enunciado o que se ora se pretendi, João Miguel Henriques, Margarida Ramalho, e eu próprio acentuámos, em linhas gerais, aqueles aspectos que, em nosso entender, poderiam ser agora tidos em consideração: como responsável pelo Arquivo Municipal, João Miguel Henriques mostrou que se dispõe, na actualidade, de um enorme acervo documental, dia a dia cuidadosamente acrescentado, tratado e valorizado; Margarida Ramalho chamou a atenção para a singularidade do património arquitectónico civil e militar; coube-me referir como Cascais tivera, desde tempos pré-históricos uma identidade própria, consciência sentida ao longo da história e que, aliás, levara a população a solicitar, em 1364, a el-rei D. Pedro I, lhe concedesse alforria em relação a Sintra, «cuja aldeia era».
            As intervenções dos assistentes e as palavras finais do Presidente da Câmara mostraram como, em parceria, num salutar diálogo inter-institucional, também esta efeméride dos 650 anos poderá vir a deixar rasto como o deixou o VI Centenário, mormente através de uma colecção de publicações que, embora modesta de aspecto e sem luxos de apresentação, é ainda hoje de consulta obrigatória.

Os Saloios de Cascais
           Não poderia ter sido mais bem escolhido o local para se falar desta enorme obra de investigação, mui minuciosamente levada a cabo pela Dra. Maria Micaela Soares, etnógrafa cuja laboriosa actividade se desenrolou no quadro da Assembleia Distrital de Lisboa.
            Dezenas e dezenas de entrevistas a informantes, todos com mais de 70 anos, que permitiram à autora traçar uma panorâmica do que foi a vida das gentes cascalenses, nomeadamente na primeira metade do século passado. Lendas, tradições, cantares, festividades, músicas, trajos, falas, mezinhas, a actividade agrícola, a exploração da cal, o trabalho do azulino de Cascais… tudo por ali perpassa argutamente, a mostrar que – para além do litoral, da afamada «Costa do Sol» a privilegiar sol e mar – há um interior ancestral, houve criadas de servir, lavadeiras, «fabricavam-se» terras de cultivo onde hoje se levantam habitações de traçado incaracterístico.
            O Professor Virgolino Jorge frisou bem todo esse manancial informativo e deu azo, inclusive, a que músicos da banda da colectividade, também acompanhados por excelente voz feminina, interpretassem três das modas mais típicas desses recuados tempos: «Bico e Tacão», «Saloia» e «Fado de Cascais».
            O salão de actos da colectividade foi pequeno para receber tanta gente – da aldeia, da vila, do concelho e de Lisboa até… – que não quis deixar de aplaudir o aparecimento desta volumosa obra, «490 páginas de redacção exigente», «impressiva expressão de arqueologia documental», como Virgolino Jorge a classificou.

Pessoas de S. Domingos de Rana
            E se Carlos Carreiras pôde considerar o referido lançamento como o primeiro acto das comemorações atrás citadas, em meu entender não menos importante terá sido, pelo seu significado humano e comunitário, a publicação, em singelo livrinho de cordel de somente 40 páginas, do que Celestino Costa decidiu partilhar connosco acerca de quem foram – ou são – as pessoas que perpassam pelos livros que, ao longo dos últimos anos, foi publicando.
            Micaela Soares teve o olhar de antropóloga, quis minuciosamente descrever tudo, para que nada viesse a perder-se na noite dos tempos; Celestino Costa, por seu turno, depois de nos haver brindado com os seus versos, muitos deles de enorme perspicácia social, fez agora uma espécie de recapitulação. Querem saber quem foi o Manel da Frada, o esquecido João da Mata, o Lavaredas, o Cara de Lata?... Pois aí têm tudo explicadinho a preceito, em linhas poucas, mas eloquentes. E o dia em que vi dois apetecíveis figos bem rachadinhos, me dispunha a apanhá-los e veio de lá a «Galinha» de vassoura na mão e eu… ah! pernas para que vos quero! E daquela vez em que o maluco do «Roi», em férias de Páscoa, pregou dois murros no «Pai Avô», que era o que toda a gente dizia que ele merecia e ninguém se atrevia a dar-lhos?!...
            Reviveu-se, pois, uma Cascais desconhecida – e muito me congratulo por isso!

Publicado em Jornal de Cascais, nº 336, 24.04.2013, p. 7.

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