sábado, 19 de dezembro de 2015

Oportuno e bonito o brado da liberdade!

             Ainda que oportuno, constituiu, sem dúvida, arriscado passo o que o maestro Nicolay Lalov ousou dar, quando programou para Concerto de Inverno da sua Orquestra Sinfónica de Cascais a execução integral da IX Sinfonia de Beethoven.
            Arriscado porque, dizem os entendidos, estamos perante uma das sinfonias mais difíceis de executar, a exigir um naipe de músicos muito bem sintonizados e dotados de larga experiência. Oportuno, porque, se há altura em que os ideais da Revolução Francesa – liberdade, igualdade, fraternidade – precisam de ser clamados em uníssono, esta é uma delas. «Nos tempos de hoje, o seu “Hino da Alegria” tem um significado muito especial, com o apelo à fraternidade e amor entre as pessoas» – escreveu-se no programa.
            No seu 4º andamento, a IX Sinfonia traz-nos ecos das festas subsequentes às gloriosas jornadas, plenas de entusiasmo popular, que a Revolução Francesa proporcionou em Paris. Agora, é de novo Paris que carece de vir para a ribalta, a proclamar liberdade. E recordar-se-á que, em 1989, o maestro Leonard Bernstein quis celebrar o Natal e a queda do Muro de Berlim com essa mesma IX Sinfonia, tomando, então, a liberdade de substituir, no célebre Hino à Alegria, de Friedrich Schiller, a palavra alemã ‘Freude’ (Alegria) por ‘Freiheit’ (Liberdade), na certeza (afirmou) de que Beethoven o aplaudiria também.

A grande inovação
            Estava, há vários dias, esgotado o Auditório Senhora da Boa Nova, para este Concerto de Inverno, o quarto da Orquestra Sinfónica de Cascais, no sábado, 12, à noite. Muitos foram, pois, os que não lograram acesso. Perante a euforia, eu quis saber do musicólogo Doutor Pedrosa Cardoso o que significava, afinal, esta peça no conjunto da obra de Beethoven, a justificar tamanho entusiasmo. Que desafios punha a um maestro e a uma orquestra? Que simbolizava?
            – Beethoven, nascido em 1770 – esclareceu-me –, bebeu na sua juventude, na Universidade de Bona, os ideais da Revolução Francesa e inspirou-se, aqui, mormente no 4º andamento, nas grandes festas ao ar livre. Esse andamento é um verdadeiro hino, uma cantata. O tema do hino da alegria aparece aí desenvolvido com formas musicais muito variadas, um verdadeiro acontecimento! Uma música fortemente apelativa. Contudo, a meu ver, o grande mérito da IX Sinfonia não está tanto nesse andamento final; o seu grande segredo reside no ‘adagio’ do 3º andamento, uma peça longa, que incita à meditação e à transcendência, algo de absolutamente divino… É aqui que reside o grande mérito desta sinfonia.
            Perguntou-me Pedrosa Cardoso qual era o coro e os solistas. Verifiquei que, na (inopinadamente) escassíssima informação constante quer na página do Município quer na da Fundação D. Luís I, esse dado estava omisso.
            ‒ É que aí reside a grande inovação de Beethoven: o coro faz parte integrante dessa sinfonia; essa, a sua verdadeira originalidade. Até aí, nunca tal se tinha pensado: a participação de um coro. A sinfonia era música pura; a partir de agora, podia ser também como que uma «música pragmática», a ilustrar um texto. E terás ocasião de ouvir o baixo cantar, com a sua voz possante, algo como: «Ó amigos, não mais de música passada! Importa cantar uma música nova, mais agradável, mais alegre!». A alegria, a liberdade, a bela filha dos deuses! O baixo começa, o coro entra e a proclamação vai-se repetindo até quase à exaustão: todos os homens serão irmãos, quando as tuas asas, liberdade, voarem por sobre o mundo! Abraçai-vos, milhões!...
            Agradeci, naturalmente, ao Amigo e ao Professor o seu depoimento, que me ensinou a deliciar-me melhor nessa noite memorável.
            Não tivemos no programa esse magnífico texto agora referido – e valia a pena ter-se pensado nisso. Soube-se, de programa nas mãos, entregue à entrada, que ouviríamos o barítono português Armando Possante, a soprano búlgara Milla Mihova (de 28 anos), a alto Daniela Banasová eslovaca (mui esbelta silhueta, no seu longo vestido vermelho, a contrastar com o negro da orquestra e dos coros… e cujas linhas de currículo e foto apresentadas no programa foram integralmente retiradas da Internet) e o tenor americano Douglas Nasrawi. E que, em vez de um coro, teríamos três: o de Câmara do Instituto Gregoriano de Lisboa, o Choral Phydellius e o Choral Spatium Vocale – cujos elementos entraram antes do 4º andamento e preencheram todos os espaços vazios do palco. Contei assim por alto: cerca de 150 coralistas a juntar às seis dezenas de músicos. Um mundão!...
            Explicita-se no programa que «a escolha dos solistas foi feita com a intenção de juntar artistas com idades diferentes e de todos os cantos da Europa». E: «Os vários coros contribuirão igualmente para este momento único».
            O maestro Nikolay Lalov não deixou, pois, os seus créditos por mãos alheias. E quantos tivemos a dita de religiosamente escutar o concerto saímos de lá reconciliados, num preito de gratidão a quem tal maravilha – contra tudo e contra todos – teima valorosamente em nos proporcionar!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 121, 16-12-2015, p. 12.

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