Arriscado
porque, dizem os entendidos, estamos perante uma das sinfonias mais difíceis de
executar, a exigir um naipe de músicos muito bem sintonizados e dotados de
larga experiência. Oportuno, porque, se há altura em que os ideais da Revolução
Francesa – liberdade, igualdade, fraternidade – precisam de ser clamados em
uníssono, esta é uma delas. «Nos tempos de hoje, o seu “Hino da Alegria” tem um
significado muito especial, com o apelo à fraternidade e amor entre as pessoas»
– escreveu-se no programa.
No
seu 4º andamento, a IX Sinfonia traz-nos ecos das festas subsequentes às
gloriosas jornadas, plenas de entusiasmo popular, que a Revolução Francesa
proporcionou em Paris. Agora, é de novo Paris que carece de vir para a ribalta,
a proclamar liberdade. E recordar-se-á que, em 1989, o maestro Leonard
Bernstein quis celebrar o Natal e a queda do Muro de Berlim com essa mesma IX
Sinfonia, tomando, então, a liberdade de substituir, no célebre Hino à Alegria,
de Friedrich Schiller, a palavra alemã ‘Freude’ (Alegria) por ‘Freiheit’
(Liberdade), na certeza (afirmou) de que Beethoven o aplaudiria também.
A grande inovação
Estava,
há vários dias, esgotado o Auditório Senhora da Boa Nova, para este Concerto de
Inverno, o quarto da Orquestra Sinfónica de Cascais, no sábado, 12, à noite.
Muitos foram, pois, os que não lograram acesso. Perante a euforia, eu quis
saber do musicólogo Doutor Pedrosa Cardoso o que significava, afinal, esta peça
no conjunto da obra de Beethoven, a justificar tamanho entusiasmo. Que desafios
punha a um maestro e a uma orquestra? Que simbolizava?
–
Beethoven, nascido em 1770 – esclareceu-me –, bebeu na sua juventude, na
Universidade de Bona, os ideais da Revolução Francesa e inspirou-se, aqui,
mormente no 4º andamento, nas grandes festas ao ar livre. Esse andamento é um
verdadeiro hino, uma cantata. O tema do hino da alegria aparece aí desenvolvido
com formas musicais muito variadas, um verdadeiro acontecimento! Uma música
fortemente apelativa. Contudo, a meu ver, o grande mérito da IX Sinfonia não
está tanto nesse andamento final; o seu grande segredo reside no ‘adagio’ do 3º
andamento, uma peça longa, que incita à meditação e à transcendência, algo de
absolutamente divino… É aqui que reside o grande mérito desta sinfonia.
Perguntou-me
Pedrosa Cardoso qual era o coro e os solistas. Verifiquei que, na
(inopinadamente) escassíssima informação constante quer na página do Município
quer na da Fundação D. Luís I, esse dado estava omisso.
‒
É que aí reside a grande inovação de Beethoven: o coro faz parte integrante
dessa sinfonia; essa, a sua verdadeira originalidade. Até aí, nunca tal se
tinha pensado: a participação de um coro. A sinfonia era música pura; a partir
de agora, podia ser também como que uma «música pragmática», a ilustrar um
texto. E terás ocasião de ouvir o baixo cantar, com a sua voz possante, algo
como: «Ó amigos, não mais de música passada! Importa cantar uma música nova,
mais agradável, mais alegre!». A alegria, a liberdade, a bela filha dos deuses!
O baixo começa, o coro entra e a proclamação vai-se repetindo até quase à
exaustão: todos os homens serão irmãos, quando as tuas asas, liberdade, voarem
por sobre o mundo! Abraçai-vos, milhões!...
Agradeci,
naturalmente, ao Amigo e ao Professor o seu depoimento, que me ensinou a
deliciar-me melhor nessa noite memorável.
Não
tivemos no programa esse magnífico texto agora referido – e valia a pena ter-se
pensado nisso. Soube-se, de programa nas mãos, entregue à entrada, que
ouviríamos o barítono português Armando Possante, a soprano búlgara Milla
Mihova (de 28 anos), a alto Daniela Banasová eslovaca (mui esbelta silhueta, no
seu longo vestido vermelho, a contrastar com o negro da orquestra e dos coros…
e cujas linhas de currículo e foto apresentadas no programa foram integralmente
retiradas da Internet) e o tenor americano Douglas Nasrawi. E que, em vez de um
coro, teríamos três: o de Câmara do Instituto Gregoriano de Lisboa, o Choral
Phydellius e o Choral Spatium Vocale – cujos elementos entraram antes do 4º andamento
e preencheram todos os espaços vazios do palco. Contei assim por alto: cerca de
150 coralistas a juntar às seis dezenas de músicos. Um mundão!...
Explicita-se
no programa que «a escolha dos solistas foi feita com a intenção de juntar
artistas com idades diferentes e de todos os cantos da Europa». E: «Os vários
coros contribuirão igualmente para este momento único».
O
maestro Nikolay Lalov não deixou, pois, os seus créditos por mãos alheias. E
quantos tivemos a dita de religiosamente escutar o concerto saímos de lá
reconciliados, num preito de gratidão a quem tal maravilha – contra tudo e
contra todos – teima valorosamente em nos proporcionar!
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais,
nº 121, 16-12-2015, p. 12.
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