quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Pelo mundo das tipografias

Os dois Valentins
            Passaram quase sete meses sobre o falecimento do Padre Valentim Marques. A notícia veio no jornal de Coimbra O Campeão das Províncias. Abriu na 1ª página da edição de 5 de Junho p. p.:
            «O padre Valentim Marques – que, durante décadas, foi gerente da Gráfica de Coimbra, propriedade da Diocese – morreu, hoje, aos 78 anos de idade».
            Acrescentava-se que o vitimara um acidente vascular cerebral e assinalava-se, desde logo, que fora substituído, em Março de 2012, na gerência da Gráfica pelo padre Manuel Carvalheiro Dias.
            Nas páginas interiores da edição, em artigo assinado por Rui Avelar Duarte intitulado «Baixa entre os apoiantes da liberdade de expressão», não foi esquecido o facto de, no período quente da revolução portuguesa, o PREC, o padre Valentim não ter hesitado em imprimir o jornal «A Luta», que se propunha substituir o «República», dirigido então por Raul Rego e Victor Direito e cuja publicação os revolucionários tinham proibido! Nenhuma tipografia ousara fazê-lo!
            E acrescenta o jornalista:
            «O ex-gestor, conceituado no meio empresarial, esteve no centro das transformações por que passou a Gráfica de Coimbra, um baluarte no seu sector de actividade até acabar por falir».
            Com ele trabalhei durante quase quatro décadas e permita-se-me que a ele associe um outro Valentim, o Morais, o grande obreiro de Mirandela & Cia, de Lisboa, um visionário também ele! Na Mirandela se fazia o Jornal da Costa do Sol, que, mui orgulhosamente, foi, a partir do nº 202, datado de 2 de Março de 1968, «o primeiro jornal português impresso em offset»! Com a Gráfica de Coimbra trabalhei também porque lá se faziam todas as publicações do Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras de Coimbra. Pioneiros, ambos, a raiar a ousadia, pois não iam a uma feira de artes gráficas que não trouxessem de lá o «último grito» em maquinaria. A Mirandela acabou por soçobrar na viragem do descalabro económico geral; a Gráfica, vítima de uma concorrência feroz…
            Muito aprendi com ambos e com os seus operários e custa-me ver como tão nobre arte se deixa, amiúde, descarrilar! Tantas gralhas, tantos erros ortográficos e sintácticos, tanta maquetização a trouxe-mouxe!...
O papel pioneiro dos Salesianos
            Custa-me, sobretudo, porque, antes dos Valentins, eu convivera intensamente, como professor, no ano lectivo de 1963-1964, na Escola Profissional de Santo António, em Izeda, com a monotype, os caracteres de chumbo, o prelo, os linguados, a revisão de provas… Uma escola onde, à noite, os irmãos salesianos tipógrafos precisavam de beber bastante leite para se desintoxicarem de uma jornada em ambiente saturado de chumbo…
            Estava, de facto, a Escola – que era de correcção, dependente dos Serviços Tutelares de Menores – confiada aos Salesianos e, tal como acontecia no mesmo âmbito, em Vila do Conde, outra escola profissional e de correcção que lhes fora entregue, um dos meios de integração dos ‘correços’ na sociedade era a aprendizagem de um ofício. As artes gráficas ocupavam nessa linha um lugar cimeiro.
            S. João Bosco (1815-1888), o fundador da congregação, cedo se apercebeu de quão importante era o ensino profissional, nomeadamente, na altura, o que se prendia com as artes gráficas, pelo que elas podiam proporcionar: os folhetos, os livrinhos, os jornais constituíam veículos únicos para a educação da juventude e da população, em geral, uma população desenraizada, vinda do campo para a cidade, em plena era industrial, na ânsia de uma vida melhor.
            A obra de D. Bosco floresceu e as escolas tipográficas multiplicaram-se por todos os países onde os Padres Salesianos foram aceites.
            Entre nós, pelas Oficinas de S. José, em Lisboa, por exemplo, passaram gerações de tipógrafos. Aliás, Joaquim Antunes evocava no Boletim Informativo de Dezembro/Janeiro, editado pelos Salesianos, o que fora, nos anos 50, a enorme homenagem feita, precisamente em Lisboa, ao salesiano Achiles Marchetti, um dos que, vindos de Itália, fora mestre de muitos dos que rapidamente se espalharam pelas tipografias do País. Uma das muitas "histórias‎ que fizeram História"…
            Por isso, ao recordar a memória do Padre Valentim Marques – amigo e confidente de Miguel Torga, que na Gráfica passava amiúde para rever ou entregar as provas dos seus Diários… – e ao saudar a obra que Valentim Morais mui ousadamente empreendeu, não posso deixar de saudar também quantos, ainda hoje, preferem sentir nas mãos o contacto do papel. Saúdo os livreiros que acarinham a língua portuguesa e terminantemente exigem qualidade e revisão dos textos. Saúdo os que, apesar de tudo, ainda acham que um jornal palpável (não meramente virtual) merece a pena. Bem sei que, para isso, há mais árvores que se abatem; mas… esse abate, desde que racional e programado, acaba por trazer, afinal, um benefício maior!
                                                                          José d’Encarnação
 
Publicado em Cyberjornal, edição de 31-12-2015:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1967:pelo-mundo-das-tipografias-os-dois-valentins&catid=91:quem-e-quem&Itemid=30

1 comentário:

  1. O meu pai foi tipógrafo...e nas tipografias fez-se um homem atento e crítico sobre o seu país e não só adquiriu uma cultura geral bem relevante, como desenvolveu uma escrita elegante e apurada.

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