segunda-feira, 26 de novembro de 2018

A Arqueologia e o telefone…

            Lembro-me do tempo em que, perdidos pelos campos, só tínhamos acesso ao telefone por deferência do dono do café e havia horas estipuladas para saber novidades. Recordaremos sempre o «Tôchim!» dos olhos arregalados do pastor e das ovelhas, a anunciar a maravilha do telemóvel, quando, até aí – e não havia muito tempo! – era o transístor que lhe amornava a solidão…
            Será despropósito tocar este tema. Não resisti, porém, a transpor para o nosso meio e reflectir, mais eu próprio, no papel que o telefone portátil – chame-se-lhe por que nome técnico, inglês, se queira chamar – representa hoje em todos os meandros da nossa actividade, sobretudo se pensarmos em todas as potencialidades que ora lhe estão associadas: ele é máquina fotográfica potente, é lanterna, é gravador de som ou de imagem, é bloco de apontamentos orais ou escritos, é álbum de fotografias, é caixa de correio a receber ou a enviar… Antojar-se-á, por conseguinte, como ferramenta indispensável para o arqueólogo de campo, que é capaz de ‘ter rede’ mesmo em confins bem remotos.
            Desviei por momentos os olhos do palco. Chris de Burgh electrizava-nos, qual ímã. Sentia estar a viver uma ocasião única, que certamente não viria a repetir-se, quer devido à minha idade, quer devido aos seus 70 anos recentemente completados.
            Assim momentaneamente desviado, meu olhar surpreendeu-se: na mesa em baixo, como que indiferentes ao espectáculo único a que estavam a assistir (melhor: a que não estavam a assistir), duas, três pessoas olhavam mui atentamente para o ecrã dos seus telemóveis, sobre eles deslizavam os dedos à procura de novidades, de mensagens, enquanto, ao vivo, o cantor nos deliciava. Dirão, mais tarde, porventura, que assistiram ao concerto, porão a frase no seu diário (se é que o têm, embora eu não o creia), escarrapacharam já a foto no Facebook....
            Assistir assistiram; vivê-lo não viveram!
            E o que mais me impressionou foi a circunstância de serem já pessoas aí pela casa dos 50/60. Dei comigo a pensar: como será o seu dia? Como o viverão? Assim, como folha caída da árvore e que as águas turvas da corrente arrastam aos ziguezagues? Folha que, por isso, nem da paisagem se apercebe, deixa-se ir, indiferente ao caminho, por, caída da árvore, já ter cumprido a missão e… deixa-se ir, deixa-se ir?...
            Não se deve ter pena de alguém. Eu, lamento-o, tive pena. Largaram uma realidade emocionalmente fecunda e atiraram-se para um universo intangível. Fuga? Decerto. Sintoma de um quotidiano suportado e não vivido? Muito eu gostaria que não! Por eles. Pelos que, necessariamente, hão-de ter à sua volta.
            Não disse a Chris de Burgh que, na sala, durante a sua actuação, não foram dez nem vinte, nem trinta, mas mais… os que ele não conseguiu arrastar. Nunca lho diria, porque outras muitas dezenas vibraram e saborearam todos os nacos dos quase noventa incansáveis minutos da sua extraordinária actuação.
            E senti-me bem como arqueólogo: mesmo perdido no campo, ou se calhar até por isso, o arqueólogo observa tudo miudamente, nada lhe pode escapar, a posição do caco, a cor e a estrutura da terra, o diferente som da picareta, aquela fina agulha de osso de que só a ponta agora aparece…

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 259, 2018-11-21, p. 6.

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