Na
peça ora em cena no Mirita Casimiro, «O
Beijo de Judas», de David Hare, tradução
e dramaturgia de Graça P. Corrêa, cenografia e figurinos de Fernando Alvarez, encenada por Carlos Avilez e que teve
antestreia a, 27, Dia Mundial do Teatro, há um grande espelho, que nos permite
a visão do verso e do anverso. Não falei com o Carlos nem com o Fernando e preferi – tal como em relação ao quadro da Stella – imaginar eu próprio a razão
por que, no 1º acto, «Decisão de Ficar», passado em Londres em 1895, tudo se
reflecte nitidamente na superfície espelhada, e, no 2º, «Decisão de Partir»
(Itália, 1897), houve uma bala que, bem no centro, estilhaçou o espelho, mas
não o logrou inutilizar: tudo continua a ser nele reflectido, mas com um rasto
trágico, violento, bem visível…
Não
sei, portanto, a razão ‘oficial’ e podem tanto o Fernando
como o Carlos vir desdizer-me acerca
do que pretenderam sugerir nesta 160ª produção
do TEC. Para mim, porém, despertou-me esse espelho fascínio enorme, pelo
significado que, perante a narrativa, dele se pode desprender: há uma visão da
realidade, do amor partilhado entre dois seres, uma visão pura, independente
das convenções, cada qual a sente viva ao ver-se ao espelho; a agressão alheia,
incómoda, brutal, veio toldar-lhe a pureza, restaram estilhaços, mas também
esses se aceitam e, porque incómodos, obrigam a uma outra reflexão.
Chocar-nos-ia
o ambiente criado, com aquela enorme cama a ganhar relevo de «personagem» principal,
palco de um «delito»; compreendemo-lo agora, uma vez que à partilha amorosa já se
atribui um significado despido de anquilosantes peias. Para o Óscar Wilde dos
últimos anos do século XIX, condenado a trabalhos forçados por admitir publicamente
um amor proibido – amores proibidos, aliás!... –, olhamos hoje com outro olhar.
Todos
os sete actores vão magnificamente. Todos. Há, todavia, uma palavra que não se
pode omitir: EX-CE-LEN-TE. Assim,
soletrada devagar para que se compreenda bem; e em maiúscula, para que não escape.
É que a interpretação de Renato
Godinho, nado e criado na escola do TEC, se situa entre o que de melhor tenho
visto nos últimos tempos. Além de o papel lhe ter exigido grande esforço,
porque permanentemente em cena, revela um à-vontade invulgar na incarnação do personagem, nada fácil, diga-se, nos altos e
baixos que as circunstâncias ali retratadas impõem. Não, não é uma representação – e que os espectadores se desenganem! Não. Renato
Godinho é o personagem vivo. Todo
ele. Numa naturalidade espantosa, que só um grande actor consegue ter. Contida
naturalidade do gesto, das palavras, dos expressivos monossílabos. Da expressão
de ternura ao pedido de dinheiro por parte de quem ora se vê na penúria. Quase
no final do espectáculo, como que em jeito de longa mensagem, sentado, ao lado
de sucessivos copos de brande e de um cigarro atrás do outro, Renato Godinho /
Óscar Wilde proclama a liberdade de amar, a liberdade de criar…
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 275, 2019-04-03, p. 6.
Sem comentários:
Enviar um comentário