quarta-feira, 17 de abril de 2019

Uma revista ou um tratado?

             Propriedade de Estoril-Sol (III) – Turismo, Animação e Jogo, S. A., e apresentando-se como revista dos casinos Estoril, Lisboa e Póvoa, Egoísta, de periodicidade trimestral, é dirigida por Mário Assis Ferreira e tem Patrícia Reis como editora.
         Justifico a pergunta do título: é que, por estarmos perante números temáticos, em que pontificam os mais distintos escritores e pensadores, os textos com que somos brindados e a mui surpreendente roupagem gráfica em que vêm envolvidos, mais nos fazem pensar em tratados, à maneira dos antigos, a dissecar à exaustão e com brilhantismo os temas escolhidos.
            Dir-se-á que, por mais estranho que um tema possa parecer, ele se integra sempre em algo de profundamente actual, cingindo-se na sua explanação a argúcia da análise com a sábia ironia que ainda melhor escalpeliza comportamentos e maior reflexão desperta.
            E logo as capas dão o mote.
            Assim, prenhe de eloquência se mostra a capa do nº 65 (Setembro de 2018). Agarraram-se nas mãos de Deus e do Homem representadas a quererem tocar-se no célebre painel de Miguel Ângelo, na Capela Sistina, e pôs-se-lhes de permeio um fio de arame farpado novinho em folha! Que melhor anátema para aliciar à leitura do número que trata de fronteiras? E, no rodapé, a frase de Kofi Annan, Prémio Nobel da Paz em 2001: «O problema não é a fé, mas sim os fiéis».
            O nº 66 (Dezembro) trouxe perspectiva diferente sobre o Natal: «Era uma vez…». O mundo das histórias infantis, os segredos que revelam, as mensagens que veiculam. Na capa, negra e táctil, o olhar oblíquo e quase fosforescente do lobo mau. Em rodapé: «Se o dragão não estiver por perto, há sempre um lobo nos caminhos». Conta Assis Ferreira, no editorial, ao recordar as estórias da sua (e nossa!) infância, a voz da Mãe, «o táctil apelo do seu regaço»…: «No seu embalo, fui herói e vítima, enfrentei a malícia do lobo mau, fui cúmplice nas mentiras do Pinóquio, fui crente – e interesseiro – na prodigalidade de um Pai Natal»… É curioso! Acaba de ser lançado, nesta mui estranha Primavera de 2019, um disco, em que artistas de agora cantam «A Ti Anica de Loulé», «Indo eu, indo eu a caminho de Viseu» e outras melodias que fizeram os encantos da nossa meninice e fazem, ainda hoje (felizmente!), as delícias de nossos netos, mesmo que não compreendam totalmente o significado dos versos, inebriados, porém, pelo embalar da melodia. Porque será este retorno à infância? Porque a população está a envelhecer e estes verdíssimos anos se relembram? Ou porque, na verdade, há dragões por perto, um lobo mau pelos caminhos, mesmo aqueles que imaginávamos mais luminosos?...
            Ainda desse número, o apelo de Assis Ferreira: importa incarnar o sonho, não perder a capacidade de o ter, «como se o mundo não fora o que existe, mas o que pode acontecer; como se o happy ending de uma estória fosse a arte de saber quando se fecha o livro e se aprende a inventar o seu desfecho».
            A acompanhar a Egoísta de Março (o nº 67), sobre «O Destino e a Vida», de que se falará, leio no cartão manuscrito do director: «Só quem vive sofre; só quem sofre sonha; só quem sonha vive!».
                                                                       José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 277, 2019-04-17, p. 6.

2 comentários:

  1. Muito bonito, este texto, a lembrar o cuidado com que é concebida esta bela revista. E o editorial de Assis Ferreira, no número de Dezembro, revela um prosador de mão cheia, com sensibilidade de Poeta.
    Obrigada.
    VHM

    ResponderEliminar