Justifico
a pergunta do título: é que, por estarmos perante números temáticos, em que
pontificam os mais distintos escritores e pensadores, os textos com que somos brindados
e a mui surpreendente roupagem gráfica em que vêm envolvidos, mais nos fazem
pensar em tratados, à maneira dos antigos, a dissecar à exaustão e com
brilhantismo os temas escolhidos.
Dir-se-á
que, por mais estranho que um tema possa parecer, ele se integra sempre em algo
de profundamente actual, cingindo-se na sua explanação a argúcia da análise com
a sábia ironia que ainda melhor escalpeliza comportamentos e maior reflexão
desperta.
E
logo as capas dão o mote.
Assim,
prenhe de eloquência se mostra a capa do nº 65 (Setembro de 2018). Agarraram-se
nas mãos de Deus e do Homem representadas a quererem tocar-se no célebre painel
de Miguel Ângelo, na Capela Sistina, e pôs-se-lhes de permeio um fio de arame
farpado novinho em folha! Que melhor anátema para aliciar à leitura do número
que trata de fronteiras? E, no rodapé, a frase de Kofi Annan, Prémio Nobel da
Paz em 2001: «O problema não é a fé, mas sim os fiéis».
O
nº 66 (Dezembro) trouxe perspectiva diferente sobre o Natal: «Era uma vez…». O
mundo das histórias infantis, os segredos que revelam, as mensagens que
veiculam. Na capa, negra e táctil, o olhar oblíquo e quase fosforescente do
lobo mau. Em rodapé: «Se o dragão não estiver por perto, há sempre um lobo nos
caminhos». Conta Assis Ferreira, no editorial, ao recordar as estórias da sua
(e nossa!) infância, a voz da Mãe, «o táctil apelo do seu regaço»…: «No seu
embalo, fui herói e vítima, enfrentei a malícia do lobo mau, fui cúmplice nas
mentiras do Pinóquio, fui crente – e interesseiro – na prodigalidade de um Pai
Natal»… É curioso! Acaba de ser lançado, nesta mui estranha Primavera de 2019,
um disco, em que artistas de agora cantam «A Ti Anica de Loulé», «Indo eu, indo
eu a caminho de Viseu» e outras melodias que fizeram os encantos da nossa meninice e fazem, ainda hoje (felizmente!), as delícias
de nossos netos, mesmo que não compreendam totalmente o significado dos versos,
inebriados, porém, pelo embalar da melodia. Porque será este retorno à infância?
Porque a população está a envelhecer
e estes verdíssimos anos se relembram? Ou porque, na verdade, há dragões por
perto, um lobo mau pelos caminhos, mesmo aqueles que imaginávamos mais
luminosos?...
Ainda
desse número, o apelo de Assis Ferreira: importa incarnar o sonho, não perder a
capacidade de o ter, «como se o mundo não fora o que existe, mas o que pode
acontecer; como se o happy ending de
uma estória fosse a arte de saber quando se fecha o livro e se aprende a inventar
o seu desfecho».
A
acompanhar a Egoísta de Março (o nº
67), sobre «O Destino e a Vida», de que se falará, leio no cartão manuscrito do
director: «Só quem vive sofre; só quem sofre sonha; só quem sonha vive!».
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 277, 2019-04-17, p. 6.
O que de bom se vai fazendo! Abraço -
ResponderEliminarMuito bonito, este texto, a lembrar o cuidado com que é concebida esta bela revista. E o editorial de Assis Ferreira, no número de Dezembro, revela um prosador de mão cheia, com sensibilidade de Poeta.
ResponderEliminarObrigada.
VHM