quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Sandra Catarino, escritora cascalense

© Vera Machado da Costa
      
             Sandra Catarino nasceu em Cascais (1972). Nas escolas de cá fez os seus estudos para ingressar na Faculdade onde se licenciou em História. Seduziu-a o ensino (fez pós-graduação em Ciências da Educação) e a essa missão de leccionar se dedicou, até que o gosto pela escrita falou mais alto e à escrita pôde entregar-se, seguindo a paixão de sempre.
            O seu 1º romance, Os Fios, publicado pela Casa das Letras (Lisboa, 2018), apresentado na Buchholz a 12 de Outubro, figurou entre as três obras nomeadas pela Sociedade Portuguesa de Autores para o Prémio Autor 2019, como «melhor livro de ficção narrativa», ao lado de «A Saga de Selma Lagerloff», de Cristina Carvalho, e «O Invisível», de Rui Lage. A cerimónia da atribuição dos prémios decorreu no Centro Cultural de Belém, a 27 de Março.
            Nada e criada nesta vila, expectável seria que em ambiente urbano as suas personagens se movimentassem, aproveitando para escalpelizar vivências, suas ou alheias. Não. E essa pode ser, de facto, a primeira grande surpresa.
            Poderá o título lembrar aos que nos dedicamos à História Antiga personagens como Ariadne, que, de um fio se serviu para lograr entrar e sair do labirinto – e de fios necessitamos amiúde para nos desenvencilharmos dos labirintos em que se nos vai a vida… Ou a astuta Penélope, fiel ao seu Ulisses, a desfazer de noite o manto que tecera de dia – e a estratagemas desses tanta vez não temos de recorrer para não soçobrar!...
            Mas é mesmo de fios de tecer que o livro trata, na medida em que Antónia, uma das narradoras, viúva de marido insensível («Naqueles tempos, já se sabe, o Ramiro tinha uma junta de bois, e isso era o mais importante» – p. 73; «Tivemos dois filhos mas nunca demos um beijo» (p. 74), se entretém nas horas vagas a fazer mantas que «dava aos latoeiros, que andavam sempre rotos e tinham uma casa gelada no Inverno» (p. 75). E esse marido, um dia, «fez uma fogueira ao jeito das queimadas e deitou as mantas ao fogo. Da janela da casa podia ver os meus filhos pequenos, sentados ao longe, soluçando enquanto olhavam as chamas» (p. 75).
            Entretenha de fazer malha leva-nos, pois, a ambiente rural, num Portugal (supõe-se…) de interior, nos anos 40 ou 50 do século passado, diríamos, porque, nessa inventada aldeia de montanha, há candeeiros a petróleo, o fogo é a lenha, os «galos enfunam-se, abrindo os bicos para chamar a madrugada» (p. 130), secam-se «os figos sobre a esteira» (p. 165), houve «um ano em que o vinho gelou nas galhetas da igreja» (p, 80), onde neva e nem sempre há gasalho… Toda a gente se conhece, toda a gente se mete na vida alheia, toda a gente propensa a mexericos e, também, obviamente, a dar a mão, quando preciso, a quem de ajuda carece.
            O padre – presença ausente – só transparece por haver uma beata («a primeira a comungar, todos os dias enfiada na igreja coberta de mantilha preta de renda, mas com a língua mais afiada do que as facas de talhar carne» – p. 83.84). Não é, porém, dessa religião que se fala; das crenças populares, sim.
            Há a parteira, narradora ela também, triste por lhe ter morrido nas mãos a Senhora, salva que foi a menina parida: «Nunca perdi uma vida até àquela noite» – p. 39).
            Há a «senhora de virtude». Não se chama assim no romanece, mas a ela se recorre para mezinhas, males de amor, previsões….
            Há o misterioso estrangeiro, que, em noite de grande invernia, vem com a filhota, surgido não se sabe donde: Scusi, signora, piove molto e mia figlia è tutta bagnata. Potrebbe accoglierci nella sua casa? De falas raras, toca violino, envolto em mistério de permanente intriga e desconfiança: “Que é feito da mãe da menina?”
            Há o Senhor, mais ausente que presente, qual sombra a mal preencher o solar das laranjeiras, desvairado sempre com a inesperada morte da mulher.
            Há a fiel criada, que se torna a absorvente mãe adoptiva da criança sobrevivente.
            Há um professor que ensina a fazer pássaros de papel e é expulso…
            Há o moço que alinhava versos.
            E tudo se passa num ambiente em que ao concreto se ligam indissoluvelmente os «sinais», uns olhos femininos misteriosamente penetrantes, de uma «fundura cinza» (p. 71)…
            A poesia na sua expressão singela («escondeu a cabeça nos joelhos e chorou um lago» – p. 101), numa prosa límpida em que, por opção, o discurso directo se mistura com a narração e há uma frase que, de vez em quando, se desgarra, se isola – para que se não dê o caso de, distraìdamente, a não consigamos ler bem. Assim:
           
            «Sabe se também ela chorou um lago?» (p. 102).

            Um lirismo suave, consubstanciado, afinal, no amor de dois jovens que, perdidos, enfim se encontram, após bem tormentosas caminhadas.
+++
            Li, pouco depois, Teoria Geral do Esquecimento, de José Eduardo Agualusa, olhar arguto sobre a estranha Luanda dos primeiros tempos após o 25 de Abril, que termina assim:
            «E avançaram ambos em direcção à luz».
            No final do livro de Sandra, um pássaro «sobe acima das nuvens e continua, como se fosse directo ao Sol».
            Ambos os autores, sem disso se terem apercebido, a transmitirem-nos mensagem urgente: carecemos de Luz!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 295, 2019-09-18, p. 6.

1 comentário:

  1. Já li o livro da Sandra e tive ocasião de lhe dizer que é uma escrita muito madura para quem começou agora a publicar

    ResponderEliminar