© Vera Machado da Costa
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Sandra
Catarino nasceu em Cascais (1972). Nas escolas de cá fez os seus estudos para
ingressar na Faculdade onde se licenciou em História. Seduziu-a o ensino (fez
pós-graduação em Ciências da Educação) e a essa missão de leccionar se dedicou,
até que o gosto pela escrita falou mais alto e à escrita pôde entregar-se,
seguindo a paixão de sempre.
O
seu 1º romance, Os Fios, publicado
pela Casa das Letras (Lisboa, 2018), apresentado na Buchholz a 12 de Outubro,
figurou entre as três obras nomeadas pela Sociedade Portuguesa de Autores para
o Prémio Autor 2019, como «melhor livro de ficção
narrativa», ao lado de «A Saga de Selma Lagerloff», de Cristina Carvalho, e «O
Invisível», de Rui Lage. A cerimónia da atribuição
dos prémios decorreu no Centro Cultural de Belém, a 27 de Março.
Nada
e criada nesta vila, expectável seria que em ambiente urbano as suas
personagens se movimentassem, aproveitando para escalpelizar vivências, suas ou
alheias. Não. E essa pode ser, de facto, a primeira grande surpresa.
Poderá
o título lembrar aos que nos dedicamos à História Antiga personagens como
Ariadne, que, de um fio se serviu para lograr entrar e sair do labirinto – e de
fios necessitamos amiúde para nos desenvencilharmos dos labirintos em que se
nos vai a vida… Ou a astuta Penélope, fiel ao seu Ulisses, a desfazer de noite
o manto que tecera de dia – e a estratagemas desses tanta vez não temos de
recorrer para não soçobrar!...
Mas
é mesmo de fios de tecer que o livro trata, na medida em que Antónia, uma das
narradoras, viúva de marido insensível («Naqueles tempos, já se sabe, o Ramiro
tinha uma junta de bois, e isso era o mais importante» – p. 73; «Tivemos dois
filhos mas nunca demos um beijo» (p. 74), se entretém nas horas vagas a fazer mantas que «dava aos latoeiros, que andavam sempre
rotos e tinham uma casa gelada no Inverno» (p. 75). E esse marido, um dia, «fez
uma fogueira ao jeito das queimadas e deitou as mantas
ao fogo. Da janela da casa podia ver os meus filhos pequenos, sentados ao
longe, soluçando enquanto olhavam as chamas» (p. 75).
Entretenha
de fazer malha leva-nos, pois, a ambiente rural, num Portugal (supõe-se…) de
interior, nos anos 40 ou 50 do século passado, diríamos, porque, nessa
inventada aldeia de montanha, há candeeiros a petróleo, o fogo é a lenha, os
«galos enfunam-se, abrindo os bicos para chamar a madrugada» (p. 130), secam-se
«os figos sobre a esteira» (p. 165), houve «um ano em que o vinho gelou nas
galhetas da igreja» (p, 80), onde neva e nem sempre há gasalho… Toda a gente se
conhece, toda a gente se mete na vida alheia, toda a gente propensa a mexericos
e, também, obviamente, a dar a mão, quando preciso, a quem de ajuda carece.
O
padre – presença ausente – só transparece por haver uma beata («a primeira a
comungar, todos os dias enfiada na igreja coberta de mantilha preta de renda,
mas com a língua mais afiada do que as facas de talhar carne» – p. 83.84). Não
é, porém, dessa religião que se fala; das crenças populares, sim.
Há
a parteira, narradora ela também, triste por lhe ter morrido nas mãos a
Senhora, salva que foi a menina parida: «Nunca perdi uma vida até àquela noite»
– p. 39).
Há
a «senhora de virtude». Não se chama assim no romanece, mas a ela se recorre
para mezinhas, males de amor, previsões….
Há
o misterioso estrangeiro, que, em noite de grande invernia, vem com a filhota,
surgido não se sabe donde: Scusi,
signora, piove molto e mia figlia è tutta bagnata. Potrebbe accoglierci nella sua casa? De falas raras, toca
violino, envolto em mistério de permanente intriga e desconfiança: “Que é feito
da mãe da menina?”
Há o Senhor, mais
ausente que presente, qual sombra a mal preencher o solar das laranjeiras,
desvairado sempre com a inesperada morte da mulher.
Há
a fiel criada, que se torna a absorvente mãe adoptiva da criança sobrevivente.
Há
um professor que ensina a fazer pássaros de papel e é expulso…
Há
o moço que alinhava versos.
E
tudo se passa num ambiente em que ao concreto se ligam indissoluvelmente os
«sinais», uns olhos femininos misteriosamente penetrantes, de uma «fundura
cinza» (p. 71)…
A
poesia na sua expressão singela («escondeu a cabeça nos joelhos e chorou um
lago» – p. 101), numa prosa límpida em que, por opção,
o discurso directo se mistura com a narração
e há uma frase que, de vez em quando, se desgarra, se isola – para que se não
dê o caso de, distraìdamente, a não consigamos ler bem. Assim:
«Sabe
se também ela chorou um lago?» (p. 102).
Um
lirismo suave, consubstanciado, afinal, no amor de dois jovens que, perdidos,
enfim se encontram, após bem tormentosas caminhadas.
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Li,
pouco depois, Teoria Geral do
Esquecimento, de José Eduardo Agualusa, olhar arguto sobre a estranha Luanda
dos primeiros tempos após o 25 de Abril, que termina assim:
«E
avançaram ambos em direcção à luz».
No
final do livro de Sandra, um pássaro «sobe acima das nuvens e continua, como se
fosse directo ao Sol».
Ambos
os autores, sem disso se terem apercebido, a transmitirem-nos mensagem urgente:
carecemos de Luz!
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 295,
2019-09-18, p. 6.
Já li o livro da Sandra e tive ocasião de lhe dizer que é uma escrita muito madura para quem começou agora a publicar
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