terça-feira, 1 de setembro de 2020

O que ela estrebuchava!

            Permita-se-me que complemente a crónica anterior, de evocação dos anos 50.

            Hoje, respeito e até acho graça à família de osgas que há anos se domiciliou na minha garagem e por lá tem feito criação. Vejo-as de vez em quando, elas olham para mim com ar entre desconfiado e sereno. Ontem, uma das mais pequenitas teve de se esgueirar à pressa, porque eu a não vi ao regar.

           Anteontem, a Filipa chamou-me de mansinho. Queria mostrar-me, soube-o depois, a sua lagartixa de estimação, que, diariamente, pela manhã, vinha comer o pedacinho de queijo que ela lhe punha num canto da entrada do salão de cabeleireiro.

            Voltámos, pois, a uma convivência normal com estas bichezas, na medida em que cabalmente compreendemos a sua missão no seio da biodiversidade. Até sou capaz de me levantar da secretária para ir abria a janela á mosca atarantada; será, porventura, bom alimento para outro bicho qualquer; esmagando-a, eu nada ganharia!...

            Não era assim nos anos 50. Lagartixa ou osga constituíam desafio de caçador. Colhia-se um pé de palanco. Limpava-se com cuidado a parte mais fina e ajeitava-se em forma de laço corrido. Ficava um laço fininho, a lembrar em miniatura o dos cowboys; aqui, todavia, não era para apanhar potro selvagem, mas, sorrateiramente, a lagartixa adormecida ao sol. Enfiava-se-lho devagarinho pela cabeça e, quando lhe chegava ao pescoço, ou puxávamos ou era a própria lagartixa a querer esquivar-se. Boa caçada, para regozijo nosso de heróis.

            Um pormenor me chamava sempre a atenção e hoje compreendo o seu enorme significado. Ao sentir-se em perigo, a lagartixa soltava, por vezes, a cauda, que ficava a rabear e ela… escapulia-se! O agressor… distraía-se!

            E dei comigo a pensar nas muitas caudas a rabear no dia-a-dia, a fim de o mais importante se poder escapar sem dar nas vistas!...

                                               José d’Encarnação

             Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 782, 01-09-2020, p. 11.

 

 

 

5 comentários:

  1. "muitas caudas a rabear no dia-a-dia, a fim de o mais importante se poder escapar sem dar nas vistas" - O retrato fiel dos tempos que correm...

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  2. Caro Professor, passei, também, por todas essas fases, do «caçador» inconsequente ao protector acérrimo de qualquer forma de vida, com várias «nuances» intermédias. Mas o que mais me apraz registar foi a influência que teve sobre mim, há um bom par de anos, uma chamada de atenção do meu filho quando acabei com a vida a uma varejeira que me atazanava a refeição... «- Bastava teres aberto a janela e ela havia de sair. Agora, tanto esforço para a matares serviu para quê?». Ele teria os seus doze anitos e eu aproximava-me dos cinquenta. Fiquei de tal modo constrangido perante o óbvio... que daí até hoje tornei-me num mestre em abrir janelas... Grande abraço.

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  3. Delicioso texto que me mostra duas coisas: primeiro, não sabia que as pobres eram caçadas e podiam deixar o rabo para trás; depois, também eu procedo mal quando,em situações inesperadas, tenho que decidir entre a vida e a morte das tais. Há dias apareceu-me uma no lava-loiças (3º. andar???) e fiquei petrificada. Ali?...De onde teria vindo? Parecia morta. Mas não estava.Quando lhe peguei com um pedaço de papel de cozinha, o que ela estrebuchava, abrindo e fechando a boca ao mesmo tempo. Matar, não conseguia...olhar para o bicho assim, também não. E toda arrepiada (vou ter que assumir o pecado) atirei-a para o jardim. Escapei sem dar nas vistas, até hoje...Quanto a ela, não quero que me contem...

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  4. Delicioso texto!
    Adoro essas lagartixas, que têm tanto de bonitas como de úteis.(Claro no meu ponto de vista,e sem querer impressionar os mais sépticos).Acho bonito ter essa atitude,de observação! Beijinho.

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  5. Elisabeth Le Paige
    quarta-feira, 2 de Setembro de 2020 13:08

    Estimado Professor, gostei muito dos seus comentários a respeito de osgas e lagartixas. Ambas vivem no meu terraço onde há arbustos e plantas. Eu e elas felizes.
    Elisabeth

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