quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A singularidade da «Egoísta»

            Não causa admiração que a revista Egoísta acumule prémios sobre prémios.
            Primeiro, porque usa o papel – e que papel! Aquele papel de gramagem alta, que a gente sente bem nas mãos, na volúpia de lhe passar os dedos por cima, no momento em que os ditos ‘luminares’ da civilização decadente optam pelo digital, pela nuvem, pelo etéreo... Aqui, não: estamos com os pés bem agarrados à terra, os braços a sentir o doce peso das páginas!...
            E, depois, cada volume é uma surpresa mesmo nesse aspecto sensorial. Escrevia, atrás, sobre a volúpia: e quem vai resistir à volúpia de passar as mãos três quatro vezes pela capa deste nº 58, de Junho, dedicado à «Mulher Lisboa»? As plumas são negras, está bem, mas o resto e as mãos respiram suavidade e não é um grito que ali está mas a vontade de tudo agarrar!...
            O papel permite o recorte, a isolar o pormenor, a chamar a atenção.
            Eu creio que já está na altura de a Egoísta merecer dissertação de mestrado numa escola de Comunicação Social. Tese de doutoramento não ousaria propor, porque temo não haver garras suficientes para sorver até ao tutano as mensagens que, revista a revista, ali nos são servidas pela pena de mui ilustres escritores, sempre precedidas pela apropriada reflexão do senhor director (Senhor, sim!), Mário Assis Ferreira!
            Não é possível esgotar numa crónica, por maior que seja, o que uma revista como este nº 58 nos desperta. Aliás, eu acho que, ao contrário do que se poderia pensar, a revista não é para se ler de afogadilho como quem desfolha as revistas da «sociedade» e das coscuvilhices da «Alta». Não. Hoje, lê-se um texto; logo, um outro; amanhã, vai-se mais adiante. Porque cada imagem foi propositadamente escolhida e é um mundo; cada texto tem um objectivo e há que apreendê-lo.
            O texto L., de Patrícia Reis (a editora), por exemplo. Entrecortado de ilustrações densas, obriga a parar, na (também) densa poesia que das suas frases se evola:
            «Foi naquela noite sem paz, horas nos carrinhos de choque, eu a fumar e tu a rir, que vi que a tua nudez era uma selva onde teria medo de entrar. Não sei como conseguimos regressar a casa, não sei como te vi dormir» (p. 101).
            E a epígrafe de Teolinda Gersão:

«Por vezes o que parece
Um imenso buraco negro
Converte-se, inesperadamente,
Numa janela de esperança».
                                                                       (p. 75).

            Como se disse, o Director não se inibe de escrever o intróito, de leitura sempre obrigatória. Desta feita, noctívago como é, «de nascença» (confessa), sente que Lisboa «só desperta ao entardecer». Contudo, para além do intróito, Assis Ferreira faz questão de acompanhar o volume com uma explicação manuscrita: sim, «Já tudo foi escrito sobre Lisboa», mas nós «escolhemos abordá-la em escrita com o coração, em mescla de vivências e emoções, em devaneios de ficção. Uma Lisboa diferente, tão terrena quão etérea, tão prosaica quão sublime. Talvez não saibamos habitar nessa Lisboa: mas ela, seguramente, habita em nós! Porque o coração é vitalício…».
            Vestido longo todo bordado a penas. O modelo é Leonor Poeiras; o estilista, João Rolo; os cinco postais do sobrescrito, convite à comunicação; as 130 páginas (não resisto a repetir), uma voluptuosa Lisboa!
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 04-08-2016:

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