Primeiro,
porque usa o papel – e que papel! Aquele papel de gramagem alta, que a gente
sente bem nas mãos, na volúpia de lhe passar os dedos por cima, no momento em
que os ditos ‘luminares’ da civilização decadente optam pelo digital, pela
nuvem, pelo etéreo... Aqui, não: estamos com os pés bem agarrados à terra, os braços
a sentir o doce peso das páginas!...
E,
depois, cada volume é uma surpresa mesmo nesse aspecto sensorial. Escrevia,
atrás, sobre a volúpia: e quem vai resistir à volúpia de passar as mãos três quatro
vezes pela capa deste nº 58, de Junho, dedicado à «Mulher Lisboa»? As plumas
são negras, está bem, mas o resto e as mãos respiram suavidade e não é um grito
que ali está mas a vontade de tudo agarrar!...
O
papel permite o recorte, a isolar o pormenor, a chamar a atenção.
Eu
creio que já está na altura de a Egoísta
merecer dissertação de mestrado numa escola de Comunicação Social. Tese de doutoramento
não ousaria propor, porque temo não haver garras suficientes para sorver até ao
tutano as mensagens que, revista a revista, ali nos são servidas pela pena de
mui ilustres escritores, sempre precedidas pela apropriada reflexão do senhor
director (Senhor, sim!), Mário Assis Ferreira!
Não
é possível esgotar numa crónica, por maior que seja, o que uma revista como
este nº 58 nos desperta. Aliás, eu acho que, ao contrário do que se poderia
pensar, a revista não é para se ler de afogadilho como quem desfolha as
revistas da «sociedade» e das coscuvilhices da «Alta». Não. Hoje, lê-se um
texto; logo, um outro; amanhã, vai-se mais adiante. Porque cada imagem foi
propositadamente escolhida e é um mundo; cada texto tem um objectivo e há que
apreendê-lo.
O
texto L., de Patrícia Reis (a editora), por exemplo. Entrecortado de ilustrações
densas, obriga a parar, na (também) densa poesia que das suas frases se evola:
«Foi
naquela noite sem paz, horas nos carrinhos de choque, eu a fumar e tu a rir,
que vi que a tua nudez era uma selva onde teria medo de entrar. Não sei como conseguimos
regressar a casa, não sei como te vi dormir» (p. 101).
E
a epígrafe de Teolinda Gersão:
«Por vezes o que
parece
Um imenso buraco
negro
Converte-se, inesperadamente,
Numa janela de
esperança».
(p.
75).
Como
se disse, o Director não se inibe de escrever o intróito, de leitura sempre
obrigatória. Desta feita, noctívago como é, «de nascença» (confessa), sente que
Lisboa «só desperta ao entardecer». Contudo, para além do intróito, Assis Ferreira
faz questão de acompanhar o volume com uma explicação manuscrita: sim, «Já tudo
foi escrito sobre Lisboa», mas nós «escolhemos abordá-la em escrita com o
coração, em mescla de vivências e emoções, em devaneios de ficção. Uma Lisboa
diferente, tão terrena quão etérea, tão prosaica quão sublime. Talvez não saibamos
habitar nessa Lisboa: mas ela, seguramente, habita em nós! Porque o coração é vitalício…».
Vestido
longo todo bordado a penas. O modelo é Leonor Poeiras; o estilista, João Rolo;
os cinco postais do sobrescrito, convite à comunicação; as 130 páginas (não
resisto a repetir), uma voluptuosa Lisboa!
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, 04-08-2016:
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