Olho
para a sala. Não estão mais do que 25 cidadãos, embrenhados nos seus
pensamentos. Poucos a acariciar o telemóvel (iphone ou ipad ou tablet, esses instrumentos de evasão). Estrangeiros
a maior parte, a carecerem de regularizar situações, ou pessoas de meia-idade. Muitos
se atrevem a interrogar o segurança. A pergunta, sempre a mesma:
‒
Eu sou o nº tal… Quanto tempo acha…».
A
frase não se completa nunca, porque o segurança, mui simpaticamente, atalha,
invariável:
‒
Lamento, mas não posso dar uma previsão.
A
mim acrescentou:
‒
Um dia, vi 50 números voarem em menos de um quarto de hora. E, nesse dia, muita
gente ficou prejudicada e alguns quiseram culpar-me a mim, porque lhes dera uma
previsão…
Serenidade
Olho novamente
derredor. A maior parte dos rostos, serenos, dobrados sob um destino que os
obrigou, nesse dia, a essa longuíssima espera, porque o Estado – ou lá quem é –
tal determinou. O peso do destino. Há quem aproveite para desabafar pelo telemóvel.
Já nem se olha para o quadro que a espaços apita, porque se sabe «a minha vez
ainda vem longe!».
Aguarda-se,
porém, um mila gre. Se vários tiverem
desistido ou perderem a vez… Poucos pegaram num livro, decerto por não terem pensado
que iriam passar ali tanto tempo, digo eu.
Cheguei
às 10.01 h. Estacionei a viatura num parque pago. Hoje, a Cascais Próxima vai enrique cer mais um pouco à minha custa. Foste
palerma, Zé! Quem te manda a ti pertenceres à classe dos que usam viatura para
se deslocarem?
O
senhor de calças cinzentas começa a inquietar-se. Deixa cair a cabeça, num desalento;
já não sabe onde pôr a pasta do computador: se no banco vermelho ao lado ou
sobre as pernas cruz adas.
Telefonam-me
do hospital: a minha consulta pode ser antec ipada
para amanhã. Nem tudo são más notícias. A do parque pago é sempre má, mas paci ência! Pode ser que, um dia, a gente consiga fazer
com que as sanguessugas nos suguem o sangue docemente, como nos tempos medievais,
quando se aplicavam no corpo doente para só chuparem os humores malignos…
Estou
aqui há uma hora e o meu grupo já vai no 25. Não pode dizer-se que seja um mau
ritmo para 2ª feira de tórrido Agosto. Aliás, mais agradável é estar aqui do
que na praia. O ar condicionado a uma temperatura aceitável, ambiente calmo… Já
Pinheiro de Azevedo garantia no Verão quente de 1975: «O Povo é sereno!». É,
pois.
‒
Olhe que a hora do carro está a acabar, veja lá! – era a filha a avisar a mãe,
que, confiante na sorte, encolheu os ombros.
Deve
ter o carro na rua. Eu, por via disso, pus no Cascais Center (nome chique, não é?). Cá fora, basta passarem uns minutos
da hora-limite para, por artes mágicas, aparecer logo um vermelho a passar o
papelinho fatídico! Mais 30 euros pró cofre!... Por isso, dentro do Cascais Center (nome giro, não é?) é que
é bom! A não ser, como acontec eu
comigo, que, dado que a máquina não recebe notas de 10 euros e a Cascais Próxima
não dispõe de verba para pagar a um funcionário permanente, se tenha de ir
esmifrar as senhoras da pastelaria ao lado e ser forçado a beber um café e as
senhoras a queixarem-se «levou-me os trocos todos!». Tive pena. Mas é o que temos
– que havemos de fazer?
José d’Encarnação
P. S.: Fui atendido passava das
16 horas. Deu-me tempo para ler, inteirinho, o livro Verbete s para um Dicionário
Afetivo, que vivamente recomendo.
Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 151, 17-08-2016, p. 6.
Pavoroso, sempre, o que descreve! E, caro Professor, fez-me recordar velhas vivências e aventuras que partilhámos, cada um de seu lado do balcão, há uns anitos a esta parte... De seguida, de súbito, um pavor de conspiração: já reparou que, se as ditas «forças vivas» se mancomunarem contra o cidadão/munícipe, poderemos assistir ao propósito de filas e demoras infinitas exactamente para aumento de receitas de estacionamento? Este mundo não está bom, efectivamente, para os antigos. Para os modernos também não, mas, aparentemente, a sua consciência é mais ténue... Grande abraço.
ResponderEliminarPois.
EliminarHelena Santos
ResponderEliminarDr Encarnação, o senhor consegue traduzir por palavras o que dilacera o comum dos cascalenses. Filas sem fim, pagar por ter de esperar. Ironia, enquanto estava grávida também cheguei a não usar desse benefício de passar à frente. Hoje, e porque engordei um bocadinho (só um bocadinho ) até no supermercado fazem questão que eu passe à frente. E não adianta dizer que não....
Ana Salgado
ResponderEliminarCá para mim, o Professor guarda uma dessas sanguessugas medievais. A forma como encara estes momentos é, simplesmente, deliciosa! Obrigada pela partilha.
Oh! se guardo, Ana! E como a gostava de cirurgicamente a aplicar!... :)
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