Anabela
Gonçalves teve a gentileza de nos enviar a versão integral do texto, em tradução de Fátima Vieira, a ficha técnica do espectáculo
e uma sinopse.
Li
o texto e pensei de mim para comigo: como é que Carlos Avilez irá pôr em cena
algo tão arrevesado, tão longe de nós, tão complicado?
«Uma
ilha é habitada por Próspero, duque de Milão, mago de amplos poderes, e sua
filha Miranda, que para lá foram levados à força, num acto de traição política. Próspero tem a seu serviço Caliban, um
escravo em terra, homem adulto e disforme, e Ariel, o espírito servil e
assexuado que pode metamorfosear-se em ar, água ou fogo. Os poderes eruditos e
mágicos de Próspero e Ariel combinam-se e, depois de criar um naufrágio,
Próspero coloca na ilha seus desafectos (no intuito de os levar à insanidade
mental) e um príncipe, noivo em potencial para a filha».
Acrescenta-se
que «o amor acontec e entre os dois
jovens», «a vingança de Próspero é bem sucedida», «Caliban modifica-se quando
conhece os poderes inebriantes do vinho». Enfim, «uma história de dor e
reconciliação ».
Minimalismo e pedagogia
E
assim foi posto à prova o engenho do encenador e dos seus mais directos
colaboradores – Fernando Alvarez (cenografia e
figurinos), Rui Rebelo (música original), a coreógrafa Olga Roriz e Miguel
Graça (dramaturgia).
Como se simula uma ilha? Como vai
representar-se Ariel? Como será a tempestade e o naufrágio? E é na resposta a
perguntas deste género, mormente tendo em conta que se trata de pôr em cena
actores consagrados ao lado de finalistas de uma Escola de Teatro que estão a
prestar provas, é aqui que se manifesta, de facto, toda a longa experiência
acumulada.
A opção
foi minimalista: mais sugerir – pelo
gesto, pelo som, pelas luzes, pela coreografia… – do que efectivamente mostrar no concreto, pois o espectador
deve entrar no jogo da imaginação e
deixar-se inebriar pelo entrecho. Por isso, o cenário é mínimo e o guarda-roupa
sem preocupações de rigor histórico, uma tentação
em que se poderia cair, atendendo a que o enredo – escrito na primeira década
do século XVII – retrata lutas e intrigas entre nobres mercadores da Itália do século
XVI, dividida então em prósperas repúblicas rivais.
Assim, esquecem-se os séculos e até
somos capazes de transpor essas rivalidades e tramóias, numa escala ainda
maior, para estes primórdios do belicoso século XXI. O minimalismo serve às mil
maravilhas!
E a pedagogia. Confidenciava-me José
Raposo, o protagonista, que estava a ser para ele experiência ímpar contracenar
com jovens que estavam a dar tudo para se embrenharem nos diversos papéis a
desempenhar. Situações criadas para que os alunos a elas se adaptassem,
«dançando» quer ao fragor da ondulação
quer ao sabor de mui suave melodia…
Escreve-se
no texto que nos foi remetido que estamos perante «uma história de vingança e
amor», «de conspirações oportunistas», que contrapõe os instintos animais do
homem às suas mais altas aspirações, como «o desejo de liberdade e a lealdade
grata e servil».
Assim
é; contudo, Ariel é como o génio da lâmpada de Aladino, como a Sininho do Peter
Pan… O homem nas suas duas dimensões: a concreta e a «outra», a do desejo, que,
ao ser fortemente vivido, acaba por se concretizar – ou nós gostaríamos que no
dia-a-dia se concretizasse. O não-poder e o «outro» poder, o da mente, capaz de
superar todos os obstáculos ou de os criar; capaz, enfim, de obter
reconciliações tidas como impossíveis. Uma dualidade – o real e o imaginado –
que tão bem se tem retratado na Literatura (recordo o realismo mágico de O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge, e
que não deixa de estar presente também em alguns dos contos de Cal, de José Luís Peixoto, só para
citar dois exemplos).
Um
retrato que, reflexão feita, se revela bem real.
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 153, 31-08-2016, p. 6.
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