A kalashnikov |
O rico desalentado |
Como é natural, o texto reflecte não
apenas a existência – não muito feliz – do autor, que morre aos 41 anos vítima
de SIDA, mas também, e muito especialmente, o seu olhar crítico, diria
devastador, sobre a sociedade que o rodeou, dominada pelo capital, de que há
todo o interesse em fugir, mesmo que para isso seja necessário despojarmo-nos
do relógio Rolex de alto preço, do isqueiro Dupont de ouro, do anel, dos botões
de punho: «Onde se apanha o barco?». «Não me chateies com essa história do
dinheiro!». «Cheira tanto a dinheiro!». «A culpa disto tudo é as rendas
baratas!». «Tudo acabou. Não resta nada! Nem o mais pequeno sonho em parte
nenhuma!».
Há um pretinho enigmático (Djucu
Dabó) que perpassa pelas cenas sem uma palavra, comovendo-se agora, fazendo-se
indiferente depois e é ele quem, no fim, com uma kalashnikov, põe termo à vida
de vários personagens. O destino inexorável? O oprimido que não ousa sequer
falar? «Negro, não passas de uma bosta!», alguém vitupera. Mas não é.
Teresa Côrte-Real e Luiz Rizo |
Teresa Côrte-Real e Luiz Rizo
compõem um magnífico casal de anciãos, que constituirá bom pretexto para se
falar da velhice e das suas angústias: «Estou farto de ser velho!». «Eu nem te
estou a tocar, velho imbecil!». Por outro lado, um jovem tenta, a todo o custo,
insistentemente, seduzir e levar «lá para dentro» a menina, que tem dificuldade
em resistir. Pincelada de gerações vigorosamente contrastada.
Escreve Miguel Graça, responsável
pela dramaturgia de Cais Oeste:
«Num mundo corrompido, onde a
afectividade foi substituída pelo comércio (o deal, como ele lhe chama) há um homem que decide morrer e uma
mulher que o acompanha, mas não sabemos quem guia quem, nem sabemos como foram
ali parar, a esse espaço amplo e ao mesmo tempo claustrofóbico que serve de
cenário para uma luta constante ente as diferentes personagens que o habitam».
E
o cenário é, como Carlos Avilez já nos habituou, minimalista: uma cadeira
acolchoada a simbolizar o bem-estar, dois bancos sólidos, pregados ao chão.
Tudo rodeado de folhas secas, outonais, a sugerir desagregação, langor… Ao
fundo, ampla janela por onde nos apercebemos do nascer e pôr do sol…
«Os cães rebentaram o silêncio da
noite», declara um personagem, como se preferisse que o silêncio se mantivesse
e cães não houvesse. O certo é que há noites – e nós preferiríamos pensar em
arrebóis. Há silêncios – e nós gostaríamos que mais falas houvera. Há cães
raivosos – e nós ansiamos por que todos passem, novamente, a ser tratados como
pessoas!
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição de 03-01-2017:
Nota: Fotos de Ricardo Rodrigues (página do Teatro Experimental de
Cascais).
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