segunda-feira, 20 de setembro de 2021

-ismo, sufixo perturbador!

         Foi apresentado no domingo, 19 de Setembro de 2021, o livro Um Anjo e Quatro Virgens, romance da autoria de José Luís Sabido, que já estava disponível desde 5 de Junho do ano passado, mas que, por via da epidemia, se não pôde apresentar na altura. Aproveitou-se o ensejo de, na villa romana de Freiria, se dar conta do livro Sustentabilidade (com os trabalhos premiados nos XIII Jogos Florais da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana), para se trazer também este a conhecimento público. É a 54ª publicação da Associação Cultural de Cascais e para ela tive ocasião de redigir este prefácio (p. 3-6):

-ismo, sufixo perturbador!

      É bem provável que, no período pós-corona, voltemos a receber frequentes convites para o lançamento de livros. Queira-se ou não, neles se espelhará, sem dúvida, o que, nesta fase de confinamento, perpassa pelo ânimo de todos e de cada um de nós. Se forem textos redigidos agora. Os anteriores reflectirão também outros pensares. Próprios e alheios. Alheios feitos nossos. A nível individual ou colectivo. Experiências de cada um dos autores – vividas, testemunhadas. Sempre a merecerem, porém, o comentário oportuno, a reflexão.

            O escritor, personagem dos seus escritos. Pela forma como escreve, optando por esta palavra e não por outra. Pelo tema que privilegia. Pelo olhar.
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Não é a primeira vez que José Luís Sabido se abalança a escrever.
Dele se publicou, em 2003, Tires Terra de Canteiros, onde desfiou, «assim a eito, memórias de tempos idos que, doutra forma, a pouco e pouco se esfumariam na joeira inexorável da vida», como tive ocasião de anotar no preâmbulo desse livro.
E se Tires Terra de Canteiros foi ímpar evocação do trabalho da pedra, Tires quando eu Era Pequenino, de 2005, constitui retrato vivo das famílias da localidade, entre 1944 e 1948. Histórias para não esquecer.
           O facto de, em 1971, ter conseguido emigrar para os Estados Unidos da América, após tentativas goradas, na década de 60, para a África do Sul e o Canadá, deu-lhe a ideia de escrever Os Cavalos do Senhor Morgado, em duas partes (publicadas em 2005 e 2008), a dar conta, romanceada mas candente, das agruras vividas em Portugal, mormente pela classe operária, sob a ditadura salazarista. A permanência na América não podia, em seu entender, deixar de ter também o seu testemunho.
            José Luís Sabido é assim. A vida não passa por ele – é ele quem na conduz! Por isso, os seus «versos soltos» incluídos na antologia Cinzelar as Palavras como as pedras… em S. Domingos de Rana (Associação Cultural de Cascais, 2009, p. 43-52) falam de deus, dos crimes, da mentira, da guerra, do sem-abrigo e… dos -ismos:

                                    De todos os muitos ismos
                                    Resta-nos apenas um
                                    É o humano egoísmo
                                    É só ele e mais nenhum!

            Ismos, sufixo das teorias baptizadas, das bandeiras de muitas lutas. Ele aparece aqui, neste Um Anjo e Quatro Virgens – título, de facto, estranho para um livro. Não é, como se verá, porque se trata de um libelo contra o fanatismo religioso, totalmente desprovido do calor humano, cego, implacável.

            Vamos, então, viajar com José Luís Sabido até aos Estados Unidos da América nas décadas de 60 e 70 do século passado, aquando da guerra do Vietname. São nossos companheiros de viagem duas famílias, uma imigrante lá há tempo, de vida organizada; outra que para lá vai pela primeira vez, a fugir de eventual ida do filho para a guerra no Ultramar, nunca andara de avião e, embora bem colocada na Baixa lisboeta, vai tentar amealhar ali mais alguns cobres.
          Pretexto, consequentemente, para sabermos duma sociedade multi-racial, multi-religiosa (cá estão os -ismos!...), assaz desigual e quase do «salve-se quem puder!». Não sem, de permeio, como quem não quer a coisa, darmos uma espreitadela por aquela Baixa duma Lisboa em que, na zona, todos se conheciam e confraternizavam. O tipicismo do compassado apitar dos cacilheiros, o pregão do vendedor de cautelas, a taberna do galego, o maço de três-vintes, o copo-de-dois pedido por não haver moedas para o de-três…
         Claro, teremos romance no verdadeiro sentido do termo – paixões destroçadas, paixões reprimidas, ciúmes criminosos, crueldades impensáveis… E romance policial por via disso, bem inteligentes interrogatórios judiciais à mistura… O ambiente cosmopolita da 5ª Avenida, a miséria do Bairro Harlem…
            «Lugares-comuns», dir-se-á. Aceito. Nem sempre, porém, o «lugar-comum» se consegue aninhar assim em linguagem singela, despojada de pretensões literárias, onde, por exemplo, o titubear entre o presente e o imperfeito do indicativo nos enlaça e nos torna inevitáveis testemunhas duma acção plena de imprevistos e que, por essa razão, nos prende do princípio ao fim.
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            Quando os drones das televisões nos mostram o aeroporto de Lisboa transformado em assustador parque de estacionamento dos aviões da TAP, entremos, pois, nesse mesmo aeroporto, mas em 1971. Bem diferente do de muitos meses atrás; assaz diferente do deste misterioso dealbar de 2020. As viagens, doravante, já não vão ser como outrora; mas podemos matar saudades! Bem-vindo a bordo, amigo leitor! E faça boa viagem!

                                                            Cascais, Páscoa de 2020

                        José d'Encarnação


1 comentário:

  1. Todos os "ismos" acentuam o significados das palavras que os aceitam! São sonoridade e energia vital da nossa Língua, alavanca efectiva do verbo escrito!

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