Tenho na garagem um resto do rolo de arame farpado que se usou na vedação do jardim. Um resto inofensivo, quase inútil; guardo-o, todavia, na perspectiva de vir a precisar. Arrepio-me sempre que o vejo. Sinto as farpas a prenderem-me as malhas da camisola e lá vai mais um fio tresmalhado!
Há
arames farpados nas fronteiras de alguns países. E até electrificados, dizem! Como
quem diz: «Isto é nosso! É nosso, entendem?». Curiosa, essa noção de
propriedade, que inclusive os Estados têm em relação aos ‘prédios’, porque,
afinal, se são nossos, porque haveríamos de pagar imposto por eles? Por
ocuparem espaço, como automóvel em parque de estacionamento? Ná, essa noção de
‘propriedade' está mesmo muito mal amanhada!
«Farpado»
lembra-me, porém, a palavra donde vem: farpa. Não me será lícito falar das que
se espetam nos touros; gosto mais das outras, as que ferem de mansinho… Não as línguas
viperinas que soltam farpas envenenadas a todo o instante e que para elas nada
está bem… Como os senhores que saúdam uma inovação, por que há muito se ansiava
e… pumba! «Sim, senhor, foi uma boa iniciativa! Peca, porém, por tardia e é
curta!»… Pobres e mal agradecidos! Já têm um bocadinho, não tinham nada, e,
agora, acham que deveriam ter mais!
É
conhecida a parábola da salamandra. Eu acho que Jesus Cristo, se tivesse vindo
à Terra neste nosso tempo, era bem capaz de a ter contado. Hoje, partilha-se nas
redes sociais e congratulo-me, porque traz lá uma farpazinha bem a preceito.
Vou citar de cor e que me perdoe quem a engendrou. Uma história bonita – e eram
também assaz bonitas e dignas de apreço as «Farpas» que, pelos finais do século
XIX (mais concretamente, a partir de 1871), Ramalho Ortigão e Eça de Queirós
mensalmente lançavam, atingindo tudo e todos sem dó nem piedade, porque não
devia haver piedade nem dó para quem tanto assacava ao Povo. Abençoados!
Vamos
à parábola.
Nessa
noite, o conferencista não esteve para muitas conversas. Levava mala preta,
qual ilusionista. Saudou a assistência. Lentamente, tirou um pano em silêncio.
Outro pano, mais um outro, vermelho… E parou, como que a indagar «O que é que
eu tenho aqui?». A assistência, suspensa. Mais dois ou três panos ainda, um
amarelo, um roxo… Queres ver que vai sair dali a Senhora das Dores? Não saiu!
Cuidadoso, retirou uma espécie de aquário com água. Havia dentro um colar (de
pérolas, seria?), uma estatueta de Buda, uma Senhora de Fátima (esta fui eu que
acrescentei, para dar cor local…), uma linda pedra com cristais de quartzo, uma
turmalina de negro metálico. Uma salamandra ia-se esgueirando por entre os
objectos…
Então,
o conferencista interpelou um dos assistentes:
–
Amigo, o que é que vê no aquário?
–
O que é que eu vejo? Vejo uma salamandra horripilante! Que nojo!
–
É o mais importante?
–
Sim! Qual foi a sua ideia em trazer para aqui esse bicho nojento?
–
Para o amigo verificar que, da variedade de objectos bonitos e sugestivos ali
mergulhados, apenas no nojento é que vossemecê se fixou!
A
conferência estava feita, a farpa lançada. Nada mais havia a dizer!
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 293,
2019-08-21, p. 6.
Que lindo texto, tão docemente acutilante...
ResponderEliminarAs fronteiras deviam ser todas naturais, respeitando a geografia. De resto cada um que impusesse a si mesmo as fronteiras que a consciência lhe ditasse.
Fronteira no sentido de propriedade é uma sequela da corrupção do Poder. Razão tinha Lord Acton : "o Poder corrompe...". E na sede de mais lucros, que às vezes entram em sacos rotos, obrigam-nos a pagar a casa já paga, as estradas pagas até à exaustão, o espaço público, nosso, de todos, até para estacionar o automóvel...
Lá vamos soltando as línguas, viperinas ou não, sabendo que sempre seremos acusados de só ver as salamandras...
Grande texto, fantástico.
Um abraço Madalena
Bem hajas, Madalena! Tua presença é sempre mui agradável!
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