É
um espectáculo, sim, mas note-se, antes de mais, que se trata simultaneamente –
e acima de tudo! – da PAP (Prova de Aptidão Profissional) dos 39 finalistas do
curso de interpretação da Escola Profissional de Teatro de Cascais. Daí que
haja, por exemplo, três elencos, a obrigar os estudantes a desempenhar mais do
que um papel e, por outro lado, a contracenarem com oito actores profissionais
da companhia, na presença (também em palco) de estudantes do 2º e do 1º ano da
escola, que se disponibilizaram para integrar o numeroso grupo de figurantes.
Uma prova, portanto, e um exercício – sob o olhar atento de um júri expressamente
nomeado para o efeito.
Dir-se-á,
por isso e em primeiro lugar, que só a experiência e o génio de Carlos Avilez –
bem secundado por Fernando Alvarez (cenografia e figurinos), Natasha
Tchitcherova (coreografia) e Nicolau Esteves (movimento) – poderiam lograr pôr
em cena, rigorosamente, tantas personagens, cada uma com seu jeito especial e
sua função bem específica no conjunto.
E
o júri aí esteve, todo olhos e ouvidos, de lápis na mão a fazer as suas
anotações para a nota final.
A história
Mais uma vez foi Miguel
Graça quem assinou a dramaturgia e fez a sua versão da obra, a partir da tradução
do original castelhano feita por Jorge Silva Melo.
A
história em si é, aparentemente, muito simples: quando fica órfão de mãe, Laureano
– um anão idiota que passa o tempo metido numa reles caixa, exposto à comiseração
e, sobretudo, à esmola dos transeuntes, nomeadamente em recintos de feira – é
disputado como ‘preciosa herança’ pelos tios: o velho sacristão Pedro Gailo, casado
com a jovem Mari-Gaila, e a irmã da mãe, Marica. São, afinal, os Gailos que
levam a melhor e vão ganhando algum dinheirinho, até porque Mari-Gaila não
deixa de usar também os seus dotes sedutores… E, um dia, no meio dessas grandes
embrulhadas, é ela, porém, quem abandona o idiota e acaba por ‘fugir’ com um
vagabundo, diz-se; e o pessoal, levado da breca, encharca o pobrezinho do anão
em aguardente (vamos, amigo, dá lá mais um urro, para a gente se rir!...) e
assim ele acaba por entregar a alma ao Criador. Quem o sepulta quem não o
sepulta, agora que já não rende mais? E nova embrulhada se gera; Marica não se
coíbe de lançar imprecações contra a família e o mundo (é, seguramente, um dos
momentos altos da interpretação de Teresa Côrte-Real) e Mari-Gaila, qual a
mulher adúltera do Evangelho, acaba por ver-se exposta, desnudada, apedrejada
sem dó nem piedade – quiçá venha daí a razão de ser do título, pois na narração
evangélica se diz que Cristo, quando lhe apresentaram uma adúltera e lhe
perguntaram que se lhe havia de fazer, escrevendo serenamente com um dedo no pó
do caminho, retorquiu: «Quem de vós estiver sem pecado que lhe atire a primeira
pedra!».
O
dramaturgo galego Ramón del Valle-Inclán (1866-1936) escreveu Divinas Palabras em 1919, peça que, no
entanto, só seria levada à cena, pela primeira vez, em Madrid, no Teatro Español, a 16 de Novembro de 1933. Pertence, pois, à última
fase da sua produção literária, aquela a que ele chamou do «esperpentismo»,
assim uma forma de grotescamente distorcer a realidade, que, já nesses primeiros
tempos do século XX, se lhe antojava difícil de observar a não ser em jeito de
tragicomédia.
«Em
jeito de tragicomédia»… foi, porventura, conscientemente ou não, o intuito de
Carlos Avilez ao propor agora a representação desta peça, porque se, por um
lado, não há «palavras divinas» que se oiçam, por outro, há os que as ouvem
muito à letra – e os jornais dão conta amiúde de mortes por apedrejamento nesta
plena 2ª década do século XXI. E ainda: que vemos por aí de exploração em
relação a quem nasce estropiado ou como tal ousa fingir-se?...
As
pedras rolam no palco. Deveriam rolar também nas consciências!...
Uma dedicatória
Por razões de
saúde, João Vasco tem-se mantido afastado das luzes da ribalta e fazemos votos
para que rapidamente melhore, pois do seu talento muito ainda há a esperar.
Contudo, não quis Carlos Avilez de, em breve nota, aludir ao facto de ter sido
com João Vasco, em 1964, figurante nesta mesma peça, encenada então por José
Tamayo e representada pela Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro.
«Um
dos espectáculos que mais me impressionou e mais influenciou o meu trabalho
como encenador», confessa. Por isso, dado que, no ano seguinte, ambos acabariam
por fundar o TEC, Carlos Avilez fez questão em, «para além de agradecer a todos
os que me ajudaram neste trabalho», agradecer a João Vasco «esta maravilhosa viagem
e dedicar-lhe este espectáculo».
Dois
representantes dos alunos quiseram também dar o seu testemunho: uma pessoa «com
uma humildade tão própria de todos os que são grandes»; João Vasco, um
«Mestre», «um homem que nos trouxe o melhor que sabia e, sobretudo, nos transmitiu
o que é a paixão pelo teatro, a razão principal para o fazer: um acto de amor».
À saída
Não resisto a dar
conta do que senti à saída, após ter assistido ao desfilar de tantas
personagens – há o mariconço, há o sacristão que parece viver noutro mundo, há a
cadela Coimbra, o pássaro Colorín, um sapo anónimo, um bode… Toda a Natureza e
toda a aldeia parece que ali se ajuntaram para ver como é que tudo se passava,
com o pobre diabo, com a beleza explorada de uma, também ela simbólica,
Mari-Gaila!...
Ficaram-nos
os urros da criatura encaixotada e rendosa, a algazarra dos foliões, o pranto
silencioso de quem se vê obrigado a, mesmo sem o querer, ter de baixar os
braços. Até quando?
Publicado em Cyberjornal, edição de 09-07-2014:
Sem comentários:
Enviar um comentário