terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Andar de cabeça para baixo

             – Ó pai! Então se tu tinhas bilhete válido, porque é que mostraste o da outra semana? Quiseste chatear o revisor, foi?
            – Não, filho, não foi! Tu imaginas o que é a vida daquele homem, de manhã à noite, «Bom dia! Se faz favor!...», «Obrigado!», «Bom dia! Se faz favor!...», «Obrigado!»? O passageiro mostra o bilhete, sem um sorriso, nem sequer, por vezes, olha para ele, o revisor põe maquinalmente o bilhete na máquina do controle e… segue em frente. Milhares de vezes, se calhar, ele faz isso, sem que o cumprimentem e lhe sorriam! Assim, hoje, ao final do dia, ele chega a casa e, ao jantar, é capaz de contar aos filhos: «Hoje, houve um velhote que me quis enganar e me entregou um bilhete da semana passada! Mas eu topei-o!».
            Há anos, vinha de carro com a rádio ligada. Era de manhãzinha.
            – Então, Amélia, ainda não há nenhum acidente?
            Era o locutor de serviço no programa, em que, como é habitual, se dá conta do movimento rodoviário, para informar quem se desloca para o emprego. A Amélia estava na redacção:
            – Não, está tudo normal. Acidente nenhum!
            Senti que haveria no ar de ambos algo de enfastiado. Que maçada, uma manhã sem acidentes!... Não tem piada nenhuma, não há nada para contar!
            Lembro-me de ter ouvido a Balbina aconselhar o amigo que ia casar:
            – Ouve lá! Quando já souberem tudo um do outro, como acordam, como se despem, como dormem, e houver iminente perigo de canseira, mudem os hábitos, troquem as mãos, façam trinta por uma linha!...
            Lembrei-me da Balbina outro dia, quando me apercebi que até o meu labrador não ia lá muito à bola com os rituais e cada dia escolhia um roteiro para os nossos passeios higiénicos. Abençoado!
            E veio mesmo a talhe de foice uma daquelas mensagens com que os amigos nos enriquecem a caixa do correio. Esta, porém, não era nada despropositada e trazia uma série de recomendações para se adiar a chegada do Sr. Alzheimer. Referia-se à ciência que dá pelo nome de Neuróbica e que tem justamente como propósito «fazer tudo aquilo que contraria as rotinas, obrigando o cérebro a um trabalho adicional»: pôr o relógio no pulso contrário; vestir-se de olhos fechados; andar às arrecuas pela casa… Ora toma! N’As Aventuras de João sem Medo, de José Gomes Ferreira, também há pessoas que andam de cabeça para baixo; acho que é para terem as ideias mais frescas. Mal sabia o autor que… tinha inventado a Neuróbica!...
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 747, 01-02-2019, p. 10-11.

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