quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Birre nos anos 50…

              Sentara-me no murete do pontão. Passava um carro a espaços, interrompendo o nervoso murmúrio das águas apressadas, levando consigo folhas, pedaços de ramos, um que outro saco de plástico. Águas barrentas, das terras por onde se haviam espreguiçado. Chovera muito essa noite. O Rio dos Mochos… Sim, o Povo chama-lhe Rio, mas não passa de ribeira, seca a maior parte do ano, apenas umas poças aqui e além, onde, na Primavera, saracoteavam girinos… O Rio dos Mochos galgara os valados e os silvados que lhe limitavam o leito. E a correnteza sob os meus pés fizera-me lembrar aquele aforismo do imperador Marco Aurélio:
            «O tempo é como um rio que os acontecimentos formassem, um rio torrentoso... Mal uma coisa se anuncia, ei-la que já lá vai: no seu lugar já está outra em jeito de abalada».
            Passei a meninice e parte da juventude ali, em Birre de Baixo, à beira do Rio dos Mochos. Por sobre esse pontão em que ora me imaginei passava a estrada que ia para a Torre. Era em macadame, estava dividida em cantões, cada um entregue a um cantoneiro, que lhe tratava das bermas e remendava os buracos. Um deles, ainda vivo, era o Zé Duque, que iria mais tarde para encarregado do cemitério da Guia. Do outro já não recordo o nome, apenas que era alto e, por isso, eu acho que era da Malveira. Para mim, moço pequeno, todos os homens altos eram malveirões.
            A montante do pontão sucediam-se os pomares. Primeiro, o do Ti Zé Apolinário, que tinha figueiras das boas e uma enorme nespereira, a nossa tentação de putos da escola, e ele, lá em cima, sentado numa espécie de pequeno alpendre que tinha o palheiro, dava-nos um berro ameaçador e a catraiada fugia a esconder-se no ribeiro. Depois, era o do Ti Silvino Capelas, com ameixeiras também e pessegueiros, outras tentações, o que me obrigava a confessar ao senhor padre que roubara fruta, embora dissesse de mim para comigo «eles deixam-na estragar, não a apanham, os melros comem-na, porque é que eu não me hei-de regalar com ela?». Minha mãe também se zangava, sobretudo quando eu apanhava ameixas verdes e havia desarranjo intestinal pela certa. De seguida, sempre em direcção ao que nós chamávamos o Caminho da Catinga, era o domínio dos Gafanhotos e do Ti Alfredo Apolinário, se não erro. Só me lembro é que tinha uma figueira do tamanho de uma casa!        Da parte de cima, mas já em direcção à Bicuda, eram terras dos Calçà-Botas. Era assim que a gente lhes chamava, parece que a mãe de um deles, quando era pequeno, lhe estava sempre a dizer que calçasse as botas, porque o que ele queria era andar descalço. Não sei se é verdade. Para aí não havia fruta, que o terreno já era de sequeiro e dava era para trigo e cevada.
            E as eiras. Havia quatro na década de 50, em Birre: a do Ti Zé Apolinário, a norte, a caminho das pedreiras; a do Ti Silvino Capelas, como que protegida por um enorme pinheiro manso, para a banda de sul; a do Ti António Fernando, do outro lado do Caminho do Poço, em relação à do pinheiro grande, e que era a que ficava mais no centro do lugar e onde até se faziam desfolhadas; e a dos Calçà-Botas, sita onde hoje está a farmácia. Cederam o seu lugar às moradias, porque também já não há quem tenha leiras de trigo ou de cevada.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 267, 2019-02-06, p. 6.

4 comentários:

  1. Belas recordações que felizmente ainda existem PESSOAS que tem excelente memória para recordar as diabruras que se cometem enquanto rapazotes coisas, que até isso, os nossos jovens não sabem .
    Parabéns pela tua excelente memória que vais alegrando e recordando com saudade, alguns um pouco mais novos. Tempos que já não voltam.
    Um abraço amigo Paulo Pimenta

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  2. Belos nacos de prosa a lembrarem os bons tempos da infância e a natureza prenhe de frutos e outras bênçãos. Muito bonito, bem haja
    VHM

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