«O
tempo é como um rio que os acontecimentos formassem, um rio torrentoso... Mal
uma coisa se anuncia, ei-la que já lá vai: no seu lugar já está outra em jeito
de abalada».
Passei
a meninice e parte da juventude ali, em Birre de Baixo, à beira do Rio dos
Mochos. Por sobre esse pontão em que ora me imaginei passava a estrada que ia
para a Torre. Era em macadame, estava dividida em cantões, cada um entregue a
um cantoneiro, que lhe tratava das bermas e remendava os buracos. Um deles,
ainda vivo, era o Zé Duque, que iria mais tarde para encarregado do cemitério
da Guia. Do outro já não recordo o nome, apenas que era alto e, por isso, eu
acho que era da Malveira. Para mim, moço pequeno, todos os homens altos eram
malveirões.
A
montante do pontão sucediam-se os pomares. Primeiro, o do Ti Zé Apolinário, que
tinha figueiras das boas e uma enorme nespereira, a nossa tentação de putos da
escola, e ele, lá em cima, sentado numa espécie de pequeno alpendre que tinha o
palheiro, dava-nos um berro ameaçador e a catraiada fugia a esconder-se no
ribeiro. Depois, era o do Ti Silvino Capelas, com ameixeiras também e
pessegueiros, outras tentações, o que me obrigava a confessar ao senhor padre
que roubara fruta, embora dissesse de mim para comigo «eles deixam-na estragar,
não a apanham, os melros comem-na, porque é que eu não me hei-de regalar com
ela?». Minha mãe também se zangava, sobretudo quando eu apanhava ameixas verdes
e havia desarranjo intestinal pela certa. De seguida, sempre em direcção ao que
nós chamávamos o Caminho da Catinga, era o domínio dos Gafanhotos e do Ti
Alfredo Apolinário, se não erro. Só me lembro é que tinha uma figueira do
tamanho de uma casa! Da parte de
cima, mas já em direcção à Bicuda, eram terras dos Calçà-Botas. Era assim que a
gente lhes chamava, parece que a mãe de um deles, quando era pequeno, lhe
estava sempre a dizer que calçasse as botas, porque o que ele queria era andar
descalço. Não sei se é verdade. Para aí não havia fruta, que o terreno já era
de sequeiro e dava era para trigo e cevada.
E
as eiras. Havia quatro na década de 50, em Birre: a do Ti Zé Apolinário, a
norte, a caminho das pedreiras; a do Ti Silvino Capelas, como que protegida por
um enorme pinheiro manso, para a banda de sul; a do Ti António Fernando, do
outro lado do Caminho do Poço, em relação à do pinheiro grande, e que era a que
ficava mais no centro do lugar e onde até se faziam desfolhadas; e a dos
Calçà-Botas, sita onde hoje está a farmácia. Cederam o seu lugar às moradias,
porque também já não há quem tenha leiras de trigo ou de cevada.
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 267, 2019-02-06, p. 6.
Bela c 'curta'metragem! Abç cpf
ResponderEliminarBem hajas, Carlos! Abraço!
EliminarBelas recordações que felizmente ainda existem PESSOAS que tem excelente memória para recordar as diabruras que se cometem enquanto rapazotes coisas, que até isso, os nossos jovens não sabem .
ResponderEliminarParabéns pela tua excelente memória que vais alegrando e recordando com saudade, alguns um pouco mais novos. Tempos que já não voltam.
Um abraço amigo Paulo Pimenta
Belos nacos de prosa a lembrarem os bons tempos da infância e a natureza prenhe de frutos e outras bênçãos. Muito bonito, bem haja
ResponderEliminarVHM