quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A mais antiga farmácia e o maior medo da minha vida

             Teve Raul Cornélio – que julgo não conhecer pessoalmente – a amabilidade de me esclarecer que errei, ao escrever, na p. 93, de «Cascais e os Seus Cantinhos» que a Farmácia Cordeiro «foi a única durante muito tempo em Cascais»:
            «Antes houve duas: a da Misericórdia e a do Sr. Lopes e, quando veio o Dr. Cordeiro, pelo menos a da Misericórdia havia, sob a responsabilidade do Sr. Antunes e, mais tarde, do Sr. João Galamas. Repito: a Farmácia da Misericórdia sempre existiu, antes e depois do Dr. Cordeiro».
            Agradeço a Raul Cornélio a gentil explicação, que veio em momento oportuno, porque alguém me perguntou outro dia se se fizera já a história dos estabelecimentos comerciais da vila de Cascais. Eu acho que não – e haja aí quem meta mãos à obra!

O meu maior medo
            Mas essa evocação das farmácias fez-me recordar o maior medo que tive na minha vida – quanto me lembre agora.
            No dia em que fiz oito anos, morávamos num casebre em Birre, minha mãe precisou de um remédio e mandou-me ir à Farmácia Cordeiro, aí pelas quatro da tarde. Teria tempo de vir depois para cima, com um amigo que trabalhava na vila. Estávamos em meados de Dezembro. Comprei o remédio e procurei o amigo, que não encontrei. Começou o lusco-fusco e não estive com meias-medidas: pela Torre não dava jeito ir, que a estrada era, se não erro, de mau piso e não tinha luz; depois, teria que passar pelo Pinhal do Cigarro, que era a divisória entre a Torre e Birre e o sítio era escuso de mais. Não. O melhor era subir pelo Jardim Visconde da Luz, passar pela Estrela do Norte, benzer-me diante do cemitério (onde fizeram depois o edifício das Águas), passar pelo Bonito Velho, Depósito d’Água, Bairro Operário, Barraca de Pau… Podia ter ido à taberna do Ti Zé Martins e pedir que me acompanhassem, porque já estava escuro que nem breu e as lâmpadas dos postes só iluminavam a espaços e da Barraca de Pau até às Quatro Estradas (o cruzamento para Birre), aquilo só eram mulatas grandes dum lado e doutro. Tive vergonha e não fui. Já não recordo se me encomendei a algum santinho ou não. Sei é que logo pensei que nunca mais esqueceria essa noite de aniversário. Terá passado um carro ou outro, mas até me parece que não; só a luz mortiça das lâmpadas por entre as franças altas das mulatas. Lembrei-me, de certeza, das histórias que minha avó contava, dos lobisomens nas encruzilhadas. De passo estugado, só queria era chegar à estrada para Birre e ver adiante o Alto do Zé Florindo, que bastava depois descer até ao pontão do ribeiro, passar rente ao muro do Soares (hoje, a Escolinha da Tia Ló) e, assim que chegasse à porta da garagem dele, que estava na esquina, o nosso casebre (ainda hoje existe como quando eu lá morei, casinha saloia térrea típica) era logo ali e eu estaria a salvo.
            Estava eu nestes pensamentos quando, do outro lado do passeio, já na estrada para Birre, sinto que vai uma senhora. A estrada não tina luz. Calo-me muito caladinho (não sei se pelo caminho, eu teria cantado algum dos fados que ouvia a meu pai, para afastar o medo) e continuo.
            ‒ Zé Manel! Ó filho!
            Estava salvo! Minha mãe tirara-se de cuidados, afeleada até mais não, e pusera-se a caminho. Creio que nunca mais tive um abraço tão quentinho e tão bom!...
            Bem haja, pois, amigo Raul Cornélio, por me haver proporcionado esta evocação de lugares que hoje já não são assim ermos; poucos os conheceram com os nomes que lhes dávamos…
            Uma Cascais antiga, de estradas poeirentas, percorridas a largos espaços pelas carreiras brancas da Palhinha. As canastras do peixe, as alcovas das compras e outros apetrechos iam lá em cima, no tejadilho, a que se acedia por uma escada nas traseiras… E havia desdobramentos quando, em dia de praça, a afluência de passageiros era grande e uma camioneta ia até à Aldeia de Juso ou à Malveira e só a da frente seguia para Sintra…
            Valerá a pena fazer essa história dos anos 50?
            Até as covas das pedreiras eles entulharam agora, como para esquecer esse passado, em que ainda não era o turismo a riqueza, mas sim a exploração do azulino cascalense, os roseirais dos Cartaxos, as hortas e os pomares dos saloios que tinham lugar no mercado da vila… E que bem sabia, quase ao cair da tarde, na véspera da ida à «praça», receber de prenda uma rosa príncipe negro, oloroso vermelho aveludado envolto numa ternura!…

     José d’Encarnação

            Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 167, 07-12-2016, p. 6.

7 comentários:

  1. Aurora Martins Madaleno
    Gostei de ler essa história de criança. Pus-me logo nesse lugar de filho no aconchego do melhor abraço.

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  2. Jorge Miranda
    8 de Dezembro de 2016 07:54

    Caro Zé,
    Acabo de ler e de recortar, para guardar, o teu artigo do Costa do Sol de ontem. Se o guardei é porque gostei, não só pelo colorido da evocação de uma distante Cascais - a da minha meninice e juventude - como pela maneira leve, intimista e confessional da abordagem.
    Creio que o teu interlocutor Raul Cornélio foi meu companheiro na instrução primária e irmão do Cornélio que esteve connosco no saudoso Jornal da Costa do Sol.
    A Farmácia Lopes, que já não é do meu tempo, ficava na esquina da Calçada da Alfarrobeira com a Rua Visconde da Luz, onde esteve instalada a Marilina, do Rui Duarte. O dono da Farmácia Lopes foi pai do dr. João Lopes, que, durante muitos anos, até à sua reforma, foi conservador do Registo Civil de Cascais. Era figura muito conhecida e popular em Cascais. Vivia na Rua Visconde da Luz, em casa de que era proprietário (foi grande proprietário em Cascais). Esta casa será das mais antigas de Cascais e nunca ninguém se debruçou sobre ela. Tem um importante registo de azulejos, na sala de entrada, a que apenas o Zé Meco se refere num estudo que fez sobre a azulejaria cascalense.
    E já agora que falamos de azulejos e a propósito da Farmácia Cordeiro, algo mais: onde param os belos azulejos (pela difusa imagem que guardo deles, julgo do tipo dos pintados pelo Ferreira das Tabuletas, se não anteriores) que decoravam a empena,que dava para o jardim, do prédio do chamado Dias da Ponte? Foi um crime a demolição total deste edifício para dar lugar ao incaracterístico imóvel onde hoje se encontra instalada a Farmácia Cordeiro!
    E ainda a propósito de azulejos, onde estão os azulejos com temas cascalenses, por isso com grande valor iconográfico para nós, das paredes exteriores do antigo café Tavares, no Largo da Câmara? Seria interessante que a câmara tentasse a sua recuperação para posterior integração num futuro museu municipal. Não te parece?
    Perguntas se não vale a pena fazer a história de Cascais dos anos 50. Mais do que pergunta é um desfio. Pois acho que sim. É o tempo em que Cascais começa a deixar de ser uma grande aldeia, onde ainda todos (ou quase todos) se conhecem, para adquirir a dimensão de cidade cosmopolita, que teima - e bem - em não ser... Pois então que venha esse oportuno trabalho de investigação e reflexão, que, na minha óptica, terá de ser feito por alguém que entenda a "alma" de Cascais.
    Obrigado, Amigo Zé, por teres feito o meu pensamento - e saudade - regressar aos tempos das distantes meninice e juventude.
    Um forte abraço,
    Jorge

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  3. António Loureiro 8/12 às 10:44
    Que bom ler isto, e logo hoje dia de Na. Sra. da Conceição que tanto diz a nós cascalenses e uma vez que a sua capelinha se encontra cedida à igreja ortodoxa. Mais uma jóia da cultura popular de Cascais que nos está vedada. Seria bom que se voltasse a relembrar que significado tem esta capelinha para o povo de Cascais!

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  4. Margarida Lino 9/12
    Meu amigo, muito interessante esta tua história. Lembro-me muito bem da tua mãe, e daqueles olhos lindos que ela tinha! Por vezes, quando a caminho da escola, parava algum tempo em tua casa e ela me dava figos, doces como o carinho que sempre nos dava. Quanto às rosas príncipe negro, havia muitas lá na quinta, como sabes. Tenho saudades daquele perfume! Nasci e cresci num berço de rosas, e que saudades, meu Deus! Beijinho.

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  5. Zé Rocha
    Sr. Professor, eu também gostava de saber porque razão a localidade DO BONITO VELHO e do ALTO DO LOMBO deixaram de ser conhecidas, em troca do Bairro das Caixas (que há muitos no concelho) e pela Tremil? Só lhe faço a pergunta a si, porque sei que é alguém muito especial, que gosta da nossa terra e da nossa origem. Obrigado, amigo!

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    1. José d'Encarnação
      Noutros tempos, havia uma Comissão de Toponímia a funcionar junto das autarquias, constituída habitualmente por pessoas que sabiam das tradições; agora, os tempos são outros e a universidade principal já não é a da Vida mas sim uma universidade teórica, em que uma licenciatura se obtém em três anos (de bastante menos de 12 meses cada). Por isso, tornou-se desnecessária a Comissão de Toponímia. Hoje, ainda sabemos que, em princípio, ruas com nomes de navegadores é no Bairro do Rosário; com nomes de escritores é no Bairro da Pampilheira; com nomes de santas é no Bairro Santana... Mas, claro, quem sou eu para responder a essa pergunta?!...
      Aproveito a oportunidade para dizer que o Bairro da Tremil (a norte do Bairro das Caixas) se começou a chamar assim, porque foi essa empresa que o construiu. O troço norte da Rua José Florindo separa-o do Alto da Pampilheira, onde se concretizou a urbanização ali levada a efeito por João Pimenta. Nós, como ali só praticamente existia o depósito de água, acabávamos por chamar ao sítio o Depósito de Água, que era, de facto, um alto e fazia uma lomba e, por isso, era... o Alto do Lombo. Outros tempos, meu velho, outros tempos!...

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  6. Zé Rocha
    És quem eu respeito, por seres alguém que nunca se escusa a dar uma resposta sábia e também capaz de lembrar a quem de direito o nome dos lugares da nossa origem. Abraço!

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