sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Um Natal difícil

 
‒ Ó mãe, eu não percebo! O Menino Jesus não é filho de Deus Pai Todo-poderoso?
‒ É. Foi isso que aprendeste na escola, não foi?
‒ Foi. E é por isso que não eu não percebo.
‒ Mas não percebes o quê?
‒ Deus Pai não é Todo-poderoso?
‒ É. O senhor dos Céus e da Terra, como nós costumamos dizer.
‒ Então, se é o senhor disso tudo, é rico, quer dizer, tem dinheiro, tem casas grandes…
‒ Bem, a riqueza de Deus não é assim como a nossa. Ele tem poder, mas o poder d’Ele não se manifesta na posse de coisas terrenas, como ter dinheiro no banco, possuir iates ou casas de fim-de-semana.
‒ Ah!...
‒ Mas, desculpa lá, Matilde. Porque é que estás a perguntar-me isso?
‒ Porque não percebo o Natal.
‒ Não percebes o Natal?
‒ Não. O Menino Jesus, que é filho de Deus Pai Todo-poderoso, não nasceu numa cabana e os pais não se viram aflitos porque não havia sequer lugar numa estalagem, que é como se diz, embora eu julgue que se deveria pensar era num hospital, numa maternidade ou mesmo na casa duns amigos…? Agora, numa cabana, eu não entendo!
‒ Senta-te aqui ao pé de mim, Matilde. E o pai também vai ajudar-me a explicar. O nascimento de Jesus aconteceu há mais de 2000 anos, compreendes? Não havia hospitais, nem maternidades nem comboios nem, muito menos, telemóveis para chamar uma ambulância.
‒ Ah! Eu já ouvi dizer que houve meninos que nasceram em ambulâncias.
‒ Ora aí está! ‒ atalhou o pai. – E porque é que nasceram na ambulância?... Porque não houve tempo para chegar ao hospital! Ora, nesse tempo, há 2000 anos, Maria e José tiveram de ir a Jerusalém recensear-se.
‒ Recensear-se? O que é isso de recensear-se?
‒ Tu já viste que nós, de vez em quando, vamos votar a uma escola ou a um pavilhão desportivo para escolher o presidente da República.
‒ Ah! Agora, como quando escolheram o presidente Marcelo?
‒ Sim. Saímos de casa e fomos até ao lugar do voto. Assim aconteceu com Maria e José: tiveram que sair da sua terra e lá foram, num burrinho – nessa altura não havia automóveis ‒ a caminho de Jerusalém. Ora, no caminho, Maria começou a ter as dores do parto e José, aflito, procurou aqui e ali e ninguém os acolheu e eles tiveram que ir para uma cabana!
‒ Uma cabana onde há animais e tudo?
‒ Bem, isso é uma maneira de dizer. Naquele tempo, aproveitavam-se as grutas naturais e as pessoas faziam aí a sua casa.
‒ Como os sem-abrigo que estão debaixo das pontes ou nos vãos das escadas?
‒ Sim e não. Porque isso era normal. Um dia, nós levamos-te, por exemplo, a Matmata, na Tunísia, e verás como, ainda hoje, há pessoas que vivem bem nessas grutas. Nos arredores duma cidade tão bonita como é Granada, em Espanha, também é assim.
‒ Ah! Então não era assim tão mau! Mas… não se diz que Nossa Senhora pôs o menino na manjedoura?
‒ Isso é uma maneira de dizer, para que se entenda melhor. Sabes, às vezes, para explicar as coisas, a gente usa as ideias de agora.
‒ Mas, ó pai, e depois não apareceram pastores com prendas e o burrinho e a vaca não aqueceram a gruta para o Menino não ter frio?
‒ Cá está o que eu te dizia. A história foi contada assim para as pessoas entenderem melhor. Claro que, nessa altura, o povo vivia da pastorícia, ou seja, tinha ovelhas e cordeirinhos e era essa a riqueza que tinham. Por isso, nada mais natural do que, ao saberem que uma senhora dera à luz um menino ali, desconfortado, lhe fossem dar presentes. Hoje, a gente, quando uma amiga nossa tem um filhote, não vamos vê-la e não lhe levamos um presente? Nessa altura, não havia fraldas descartáveis nem biberões e, por isso, um cordeirinho era óptimo para ajudar nas refeições dos primeiros dias e dar força a Nossa Senhora para tratar do Menino.
‒ Ó pai, mas se Deus é Todo-poderoso não podia ter feito nascer o Menino assim no Verão, num dia quente e não quase à meia-noite duma noite de Inverno?
‒ Essa é uma boa questão, Matilde. Nesse tempo não havia calendário como nós temos nem relógios. Era tudo mais ou menos! Do nascer ao pôr-do-sol. Por isso, muitos anos mais tarde, quando foi necessário pensar em que dia teria sido, acharam que o melhor era pôr assim mesmo no começo do Inverno, até porque já havia entre os Romanos, nessa altura, a festa do nascimento do Sol Invencível. Ora, não era o Menino Jesus como um Sol Invencível? Era, pois! Estão substituíram a festa dos Romanos pela dos Cristãos.
‒ Mas, ó mãe, tu sabes quem é a Dolores, aquela minha amiga espanhola.
‒ Sim, sei.
‒ Eles, em Espanha, a festa é no Dia de Reis, a 6 de Janeiro.
‒ Boa questão, Matilde. É que o nascimento do Menino Jesus já se esperava há muito tempo e havia sábios que estudavam os astros (por sinal, onde hoje está tudo em guerra, lá na Síria) e sabiam que, um dia, quando nascesse esse Salvador, eles teriam um sinal no céu. Ou foi um cometa ou dois planetas cuja luz se juntou e foi mais intensa do que o habitual. Era o sinal! E, como viviam no deserto, montaram-se nos camelos e, guiados por essa «estrela» (como se diz), lá foram até Belém e ofereceram ao Menino presentes.
‒ Mas são presentes esquisitos, pai! Ouro, incenso e… mirra!
‒ Isso eu não sei bem explicar, mas acho que também é uma coisa que se inventou para ser simbólica, assim como uma lição de vida, assim como tu ofereceres uma rosa à mamã para lhe dizeres que gostas dela. O ouro são as riquezas; o incenso é – creio eu – o símbolo do louvor, da necessidade que todos temos de apreciar o que os outros fazem de bom e a mirra…
‒ Já percebi, Interessa-me é a história dos presentes. Já pensaram no que me vão dar este ano? Claro, não é para mim, é em honra do Menino Jesus!...
 
            Cascais, 14-10-2016                                                  
                                                                           José d’Encarnação
[Integrado nas pp. 31-34 da antologia Histórias e Contos de Natal, editada pela Externato Rainha D. Amélia, de Lisboa, Dezembro de 2016].

2 comentários:

  1. Vou juntar aqui os comentários feitos no FB até este momento. Agradeço-os penhoradamente a todos e cada um dos subscritores, assim como os votos de boas festas que aproveitaram o ensejo para formular. Bem hajam!

    Os comentários:
    Comentários
    Maria Jacinta Magalhaes
    Muito bonita, esta história. E que ensina muita coisa, como convém nas histórias.

    José Figueira
    Sublime!

    Valentina Perum
    Uma delícia!

    Domingos Barradas
    Uma história de Natal agradável e bem conseguida para deleite de crianças e adultos..

    Maria Duran Kremer
    Linda! Vou traduzir e contar à minha netinha!
    Obrigada, professor, pelo sorriso que fez surgir nestes dias tão conturbados e cheios de dor!
    Teresa Silva
    Esta história é uma autêntica FAQs (como se usa agora dizer) sobre o Natal! ��

    Migas Botelho Pereira
    Oh Sr. Professor, mui estimado Amigo e vizinho. Só lhe digo, para quem ñ tem jeito...

    Joaquim Cardoso
    Gostei tanto que partilhei

    Helena Santos
    Que bonita história para se contar.

    Maria David Que bonito!...

    Vitor Cantinho
    A mais bela história de Natal.

    Jose Martins Colaço
    Continuas inspirado.

    Rosa Soares
    Muito bonita...

    Mafalda Pinheiro
    Espetacular, Professor, adorei!

    Francisco Ramalho Claré
    Muito bonito compadre, gostei muito.

    Silvia Ribeiro
    Muito bonito

    Bernardete Barreto
    Linda! Adorei. Vou partilhar.

    Maria Surrecio
    Linda!

    Maria De Jesus Brito
    Linda história!

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  2. Leonor Zozaya-Montes 24/12 às 1:36
    Qué delícia de conto! Cómo gostei! Não sabia das histórias literárias do Encarnação... Maravilhoso!

    Ana Constante 24/12 às 19:36
    Linda a história! Parabéns, professor.

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