Desde
que o saudoso fadista cascalense Carlos Zel (1950-2002) deixou inesperadamente
o nosso convívio, que o Casino Estoril, numa evocação do êxito que haviam sido
as suas «Quartas de Fado», às quartas-feiras no espaço do wonder-bar, tem realizado anualmente uma Gala de Fado em sua homenagem.
Foi
a 17ª no passado dia 23.
E
se há palavras susceptíveis de caracterizar essa noite deveras inesquecível,
com o Salão Preto e Prata a fazer o pleno, eu atrever-me-ia a escolher: emoção
e profissionalismo.
Após
o jantar, às 22.40 horas, recordámos logo um dos primeiros fados do Zel,
acentuados os versos – «as minhas mãos são tão puras… e manchá-las é pecado!»… –
pelo movimento sincronizado do ginasta a
subir e a descer, num bailado, na brancura da longa tira de pano pendente.
Sentado
numa poltrona, no canto direito do palco, Ricardo Carriço ia lendo as introduções
ao que se iria passar de seguida, a acentuar a relação que o fadista seguinte
tivera com Carlos Zel. E os fadistas, emotivamente, um a um, não resistiram a
evocar o que fora o seu encontro com o Zel, como ele os marcara, como a sua
disponível afabilidade os tocara qual dedo de um invisível ET…
Foi,
de facto, mui difícil esconder a emoção.
Ricardo
Ribeiro, por exemplo: quanto o homenageado o apoiara sempre.
Kátia
Guerreiro, num daqueles momentos em que ainda a Medicina era a sua principal
preocupação, mas já a alma fadista lhe sorria, estivera com o Zel. E contou
como foi. «Já sofreste bastante para quereres cantar o fado?». «O quê? É
preciso sofrer para cantar?». Zel disse-lhe que experimentasse. «Foi Deus», de
Alberto Janes – escolheu Kátia. No fim, Zel fez-lhe uma carícia: «Valeu a
pena!».
Foi
assim. Esta, a atmosfera. Este, o objectivo conseguido – que, um destes dias, o
telespectador da RTP 1 terá oportunidade de verificar como foi. Uma ternura a
pairar pelo salão. A voz quente, quase embargada, de Kátia Guerreiro. A voz
poderosa do Ricardo Ribeiro, que deu oportunidade a José Manuel Neto de mostrar
o seu gigantesco virtuosismo no incomparável dedilhar da guitarra portuguesa e
a Carlos Manuel Proença, na viola de fado, também em solo e depois bem
acompanhado por Daniel Pinto (na viola baixo). Profissionalismo ímpar! No painel
de fundo, sempre a olhar-nos, naquela sua atitude pausada e serena, a figura de
Carlos Zel…
Inesquecível,
a noite, não há dúvida. Abrilhantada por estrelas da geração do Zel e que são
hoje nomes grandes, como ele foi, nesta saga tão nossa!
Começou
Gisela João. Vestido preto curto. «Somos dois gritos calados». Lábios pintados.
Cabelos em leve desalinho. «O Senhor Extraterrestre», a criação do não menos
saudoso Carlos Paião para Amália Rodrigues e a que Gisela emprestou mui impressionante
roupagem. «O meu Amigo está longe» – numa voz bem dolorosa…
Veio
Ricardo Ribeiro, cachecol carmesim caído. «Destino Marcado»: «Prefiro ser
sempre triste para não morrer de alegria». «Meu amor, não vale a pena teres dó
do meu coração». «Não tenham medo da fama / De Alfama
mal afamada / A fama às vezes difama / Gente boa, gente honrada» – foi o 3º
fado, aquele em que houve oportunidade para os músicos mostrarem a sua enorme
garra de artistas.
De
longo vestido verde, Fábia Rebordão substituiu Cuca Roseta, que arreliadora
gripe impediu de estar presente. A sua criação: «Pergunta a quem quiseres / Ao
vento, à madrugada». Depois, dois fados tradicionais: «Foi Deus» e «Limão».
O
Hélder Moutinho mais pequenino pareceu depois da alta Fábia Rebordão. «À mercê dum vento brando, bailam rosas nos vergéis, e as marias vão bailando»;
«Eu nasci na Mouraria / Num prédio que resistia / Ao progresso que o
venceu»; «Volta Atrás Vida Vivida”, de Manuel de Almeida, que foi, na verdade, ele também, uma
referência para Carlos Zel (ai, as noites no Forte Dom Rodrigo, em Birre!...).
Aqui, mais uma vez, mostrou José Manuel Neto como se faz cantar a guitarra!...
Ana
Sofia Varela, de longa túnica azul escura. «Nossa Senhora do Fado», de Carlos
Zel: «Quando a noite se avizinha. E aceito que alguém me ajude. Vou rezar à
capelinha. Da Senhora da Saúde…)». O segundo fado, de Fernando Maurício: «Aqui,
em cada fado, há uma flor. No canteiro da alma de quem canta». O terceiro, «Ó
meu amor não te atrases»: «Esta noite é Lua Nova / E tu não sabes de fases»…
Rão
Kyao evocou o que fora a sua actividade juntamente com o homenageado e interpretou
à flauta, com o estilo ímpar que se lhe reconhece, três fados que já gravou com
vários artistas, entre os quais um que muito lhe dizia a ele e a Carlos Zel:
«Deus também gosta de fado», de Nuno de Aguiar, uma das referências igualmente
do fado em Cascais na década de 60.
Kátia
Guerreiro: longo vestido escuro cingido à cintura por cinto prateado, braços
nus. Começou por um fado menor, tão do agrado do Zel: "Tenho uma tristeza velha. Tão velha que não sei
bem...". Depois, «Tenho uma rosa vermelha». A terminar: «Amor de mel, amor
de fel».
Jorge Fernando ,
que muito acompanhou Zel, encerrou o desfile de estrelas. Primeiro, «A valsa
dos amantes»: «Faz tempo que te não via e, hoje, ao ver-te pensei: estás mudada,
estou mudado». Depois, «Quem vai ao fado, meu amor», de Ana Moura. De seguida:
«Pode ser saudade» – ‘esta emoção de
estar aqui’. A letra a condizer bem com o que, afinal, ele e muitos de nós sentíamos…
Finalmente, o sublime «Chuva» com que Marisa tão brilhantemente nos cala na
alma, aqui escolhido por Jorge Fernando
para fechar com chave de ouro os nossos sentimentos a encerrar a gala, chegadinhos
à uma da madrugada, o tempo voara:
As coisas vulgares que há na vida
Não deixam saudades
Só as
lembranças que doem
Ou fazem
sorrir…
Há gente
que fica na história
da
história da gente…
Foi
assim. Carlos Zel, uma lembrança que dói. E ficou na história da história de
quantos tiveram a dita de o conhecer!
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, 26-01-2019 :
http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/musica/a-gala-foi-de-emocao~
Fotos gentilmente cedidas pelo Gabinete de Comunicação da Estoril-Sol.
Sobre a gala do Fado
ResponderEliminarRecordar os que já partiram, é devolver-lhes a vida, pelos vistos o objectivo da gala. Lembrar, pela sua pena, os que cantaram para honrar o Fado, é ampliar a memória dos tempos, a nossa memória colectiva.
Muito obrigada
H.