segunda-feira, 29 de outubro de 2018

As bonecas de trapos, a praça de touros e o Bairro Marechal Carmona!

             Inaugurada na tarde de quinta-feira, 25, esteve patente ao público nas instalações da Santa Casa da Misericórdia de Cascais, com entrada pela Rua da Saudade, em Cascais, a exposição «Nem os trapos são velhos», com trabalhos de utentes dos centros de dia a cargo daquela secular instituição.
            Escusado será dizer que há ali de tudo, numa encantadora panóplia de imaginação, ironia, saber popular, tradição, engenho, dedicação… a provar que, na verdade, de qualquer trapo, por mais velho que pareça, pode brotar, em estreita comunhão com outros, mui deliciosa obra-prima.
            Uma exposição que valeria a pena poder estar mais tempo e – porque não? – ser itinerante. Estavam na inauguração presidentes das juntas de Alcabideche, Cascais-Estoril, S. Domingos de Rana… qualquer deles tem salas de exposição, poderia pensar em apresentar lá essas bonecas de trapos, a fazer as delícias de miúdos e graúdos, sem dúvida!
            Teve pompa e circunstância a sessão de abertura, com passagem de modelos, montados em bicas, perante mais de meia centenas de pessoas (sobretudo dos centros de convívio e funcionários da Santa Casa), no pátio interior da Misericórdia, com sábia apresentação por uma das técnicas da Câmara, entidade que se associou ao evento.

Falou a Senhora Provedora
            Aproveitou a Senhora Provedora, Dra. Isabel Miguens, para louvar o trabalho desenvolvido pelos utentes, sob orientação das mais directas responsáveis pelos centros, salientando que as obras destes «militantes da sabedoria da vida» mui eficazmente contribuíam não apenas para «dar vida aos trapos», mas também «para devolver cidadania aos artífices».
            Num trocadilho pleno de oportunidade, aludiu ao facto de que, se tudo isso «custa fazer», se calhar, muito mais «custa não fazer»!
            E, em jeito de desafio ao presidente da Câmara, também ele Irmão da Santa Casa, sublinhou quanto importaria que à «academia do saber» que a Câmara desenvolve se deveria unir essoutra academia, «a do fazer».
            Não desprezando igualmente a possibilidade de se referir aos problemas que afectam a chamada «terceira idade», frisou que se conhecem os custos da doença, mas se desconhecem, de facto, os custos da prevenção – e nestes importa investir.

O discurso político
            Embora – como teve o cuidado de lembrar – não tivesse intenção de fazer um discurso eleitoralista, porque ainda faltam alguns anos para novas eleições autárquicas, o presidente da Câmara começou por afirmar que muito deve Cascais à Santa Casa, pelos séculos de serviço que tem prestado a população cascalense necessitada.
            Aproveitou, no entanto, para dar algumas notícias de interesse:
            ) Resolveu-se o problema da praça de touros, que muito trazia preocupados, desde há bastante anos, os responsáveis pela Misericórdia, por ter sido reprovado pelo executivo de António Capucho o Plano de Pormenor, aprovado no tempo de José Luís Judas, do empreendimento previsto para o sítio onde se arrasou a praça de touros, no Bairro do Rosário. Assim, acertou-se que, em vez dos 29 000 m2 de construção previstos, apenas se fariam 20 000 e que não se atingiriam os 16 ou 17 andares iniciais, mas somente a altura a que estava a praça de touros, não mais. Desta sorte, com a verba agora recebida e que esteve cativa durante todos estes anos, foi possível à Santa Casa pagar as dívidas todas (designadamente a dos juros sempre em aumento…) que a vinham atormentando. «Todos estamos de parabéns!».
            2ª) No que concerne ao Bairro Marechal Carmona, que ora passou na totalidade para a posse da Câmara, também por efeito do protocolo assinado com a Santa Casa, garantiu o presidente que todos os que lá moram lá continuarão a morar, em melhores condições, porém. Em segundo lugar, haverá a preocupação de dotar o bairro de maiores facilidades de mobilidade para os moradores. Finalmente, haverá equipas para os acompanhar, numa perspectiva de «envelhecimento activo», porque – importa não esquecer! – os anciãos são também como que essa «academia do saber» de que falava a Senhora Provedora. Nesse sentido, há já duas equipas universitárias, uma do Instituto de Ciências Sociais e outra da Faculdade de Arquitectura a fazer aturado estudo da situação, a fim de vir a ser possível lançar as necessárias propostas de reabilitação das estruturas e, consequentemente, da melhoria das condições de vida dos habitantes.
            3ª) E já que se falava em famílias, não quis o presidente deixar de informar que – para além de a Câmara ir colaborar activamente na recuperação da igreja da Misericórdia, como importante património edificado da vila – os Paços do Concelho passaram a ser a «casa da família de Cascais», porque estão abertos, podem ser visitados, nomeadamente para se verem de perto os magníficos painéis de azulejos não só os da escadaria de acesso ao primeiro andar como, de modo especial, os da sala de reuniões. Não se referiu o presidente ao azulejo que identifica – mal – os Paços do Concelho, pois que diz ele ser ali o “Município de Cascais” e, como sabemos, não é apenas ali, por mais que algum aventureiro, um dia, por isso possa vir a pugnar!
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 27-10-2018:

           

Foi numerosa a assistência

Instantâneo da apresentação da passagem de modelos

E que trajar!...

Então não sou uma beleza, ora digam!...
Quão vaidosa que eu estou!...

sábado, 27 de outubro de 2018

As obras na 2ª circular, em Cascais

            Continuam em bom ritmo as obras no leito do ribeiro do Cobre, junto à Rua de Santana, em Cascais.
            O ribeiro passará canalizado sob essa via, tendo-se previsto ampla capacidade de escoamento das águas mesmo em altura de grandes enchentes. Haverá uma rotunda no entroncamento da Rua de Santana com o final da 2ª circular, que desce da Pampilheira, com as dimensões adequadas não apenas à intensidade de tráfego que se espera, mas também para constituir um refreador de velocidade, atendendo a que, situando-se num vale, há a tendência (hoje verificada) de se excederem os limites aconselhados.
            Pensa-se que a dinâmica imprimida aos trabalhos poderá prender-se com a necessidade premente de melhor se regularizar o tráfego junto ao Hospital da CUF Cascais, designadamente na Rua Fernão Lopes, cuja continuação até à Rua Pedro Reinel, no Alto da Pampilheira, consta em cartas camarárias (veja-se planta em anexo). Por outro lado, a inauguração, na Av. Engº Adelino Amaro da Costa, da super-esquadra da PSP, que poderá vir a ocorrer antes do Natal, postula maior disponibilidades de acesso e saída para a zona do interior do concelho, o que com a 2ª circular concluída melhor se obterá.
            A fotografia que se junta, tirada ao começo da manhã de sexta-feira, 26, a partir do novo Parque de Estacionamento da Pampilheira, no sentido poente-nascente, ao lado do trecho da 2ª circular em execução, mostra como progride a passos largos a terraplanagem das terras que ali estão a ser depositadas. Desta sorte, a ideia que chegou a pôr-se de haver necessidade de um viaduto foi abandonada, por se lograr alcançar um desnível não muito acentuado.
            Pela Rua de Santana – que é, neste momento, uma artéria bem movimentada e perigosa, devido às referidas velocidades excessivas que nela facilmente se praticam – poderá aumentar, naturalmente, o fluxo de tráfego que hoje regista, mas passará a circular-se com maior segurança e mais facilmente, sem dúvida.
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 2018-10-26:
Instantâneo das obras na manhã do dia 2


           

Patrimoniices cascalenses 20 - O Senhor morto!

            
              Trata-se de bem antiga devoção católica, a da veneração de Cristo como se supunha que ele tivesse ficado, deitado, antes de introduzido no sepulcro. Há um primeiro momento antes desse, o da deposição do corpo no colo da Mãe, imortalizado em muitos quadros, baixos-relevos e esculturas, das quais a mais célebre é, sem dúvida, a Pietà, de Miguel Ângelo (1499), exposta na Basílica de S. Pedro, em Roma.
            Altares laterais tendo à vista a imagem do Senhor Morto são, pois, frequentes um pouco por todo o mundo cristão. E, como muito bem anotou Mário Cornélio, há essa imagem na igreja da Misericórdia em Cascais, que se incorporava na tradicional procissão de Sexta-feira Santa, de que momentos altos eram as paragens onde a Verónica, desenrolando lentamente uma réplica do Sudário, melodiosamente pranteava a morte do Senhor. Perdeu-se a tradição; ficou a memória.
            Não é, porém, de Cascais vila a imagem que submeti à adivinhação dos meus amigos: é da igreja de S. Domingos de Rana.
            Transcrevo do livro Registo Fotográfico da Freguesia de São Domingos de Rana e Alguns Apontamentos Histórico-Administrativos, que a respectiva Junta publicou em 2003, o que sobre essa imagem ali se escreve, na página 178:
            «Existe na parte lateral da nave central do lado direito, uma imagem do Senhor morto, a qual foi esculpida pelo mestre Teixeira Lopes e foi feita na fábrica das Devezas, em Vila Nova de Gaia, que foi pertença de António de Almeida Costa e Feliciano Rodrigues Costa, este sócio e compadre do primeiro.
            Eram naturais de Caparide e resolveram então doar – há cerca de cem anos – à igreja matriz da sua freguesia a obra-prima que tinha sido feita na sua fábrica».

                                                            José d’Encarnação

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Um violoncelo de 1760!

             Um dos momentos altos do Concerto de Outono, com que a Filarmónica de Cascais nos presenteou na noite de sábado, 20, no Auditório Srª. da Boa Nova, foi a execução, na 2ª parte do serão, do concerto para violoncelo em si menor (op. 104, B. 191), da autoria do compositor checo Antonín Dvořák (1841-1904). Uma peça de extrema beleza, em que o diálogo entre a orquestra (nomeadamente as flautas e o clarinete) se desenrola mui graciosamente. Acontece, porém, que, tocando num lindo violoncelo datado de 1760 (!), saído do engenho ímpar do celebérrimo construtor de violinos, o napolitano Nicolò Gagliano, Romain Garioud, o solista convidado, demonstrou um virtuosismo incomparável, que a todos encantou.
            O auditório estava lotado e, no final, de pé, não se regatearam aplausos, a que Romain Garioud correspondeu com a execução de mais um trecho, que (diga-se) até os músicos da Sinfónica ouviram deliciados.
            Dirigida, como é habitual, pelo maestro Nikolay Lalov, a Orquestra brindara-nos, na 1ª parte, com a também célebre Sinfonia Incompleta (a nº 8, D759 em si bemol menor), de Schubert, e os variados trechos de Má Vlast Vltava, do checo Bedrich Smetana, um dos seis poemas sinfónicos com que, em espírito nacionalista, belamente retrata o seu país. «Má Vlast» significa «a minha Pátria» e Vltava é o rio Moldávia, cujo percurso, ora suave e deslizante, ora veloz e impetuoso por entre as fragas, facilmente fomos imaginando…
            Não poderia deixar de salientar ter visto estampada, no rosto dos músicos, no termo do espectáculo, a imensa alegria de terem participado. E escrevo «participado», porque não se limitaram a tocar, com o virtuosismo que se lhes reconhece, porque amiúde acompanharam num balancear e numa expressão de felicidade os sons que estavam a ouvir.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal¸ edição de 22-10-2018:

O nº 100 do C

              Com periodicidade mensal, o jornal C teve, no passado mês de Setembro, a sua 100ª edição. Com 16 páginas, formato de jornal, é propriedade da Câmara Municipal de Cascais e dirige-o Marco Espinheira. Constam na ficha técnica seis senhoras do Departamento de Comunicação e nota-se, sem dúvida, na paginação e na escolha dos temas, esse arguto pendor feminino, que sabe como se faz jornalismo ao serviço de uma autarquia.
            Uma tiragem de 120 000 exemplares, chega decerto a todos os munícipes e há que aplaudir, desde logo, a sua longevidade, pois é raro a publicação de uma qualquer Câmara lograr manter-se durante tanto tempo e com regularidade, no mesmo estilo, o mesmo formato e a mesma orientação. Estão, pois, de parabéns os seus mentores e realizadores. Também nisto Câmara dá cartas – e ainda bem!
            Assina habitualmente o editorial o presidente do Executivo, que, neste número, atendendo a que, em breve, se ouviria «a campainha tocar» para as aulas, se dirige aos alunos do concelho, dizendo-lhes a dado passo:
            «Não precisam de ser os melhores. Só precisam de dar o vosso melhor».
            Regozija-se, mais adiante, com a (então, próxima) inauguração do pólo, em Carcavelos, da Universidade Nova de Lisboa. Um sonho concretizado, a School of Business & Economics. Assim mesmo, em língua internacional, que o português era menos soante, sobretudo se se pensasse em chamar-lhe «Escola de Negócios» e alguém era capaz de ficar de pé atrás: «Negócios? Que negócios?»… Ora «business» não corre nunca esse risco, como ninguém acha que se deva mudar o nome do Ministério dos Negócios Estrangeiros, porque, aí, há sempre que ‘negociar’ e bem!
            E quanto ao uso do inglês, não pode esquecer-se que C tem duas páginas redigidas nessa língua, para a vasta comunidade estrangeira que escolheu Cascais para residir.
            Uma página de anúncio da iniciativa Lumina, o festival da luz que iria ocupar o fim-de-semana de 21 a 23, e cujo percurso pormenorizado se mostra nas páginas centrais. Aliás, essas quatro páginas poderiam funcionar autonomamente, guia excelente do festival. Temos o oportuno incitamento da Mobi Cascais a que os jovens usem a bicicleta. Há outros textos especialmente destinados aos estudantes: como se deve comer, «Aprender, aprender sempre!» e duas páginas de eloquente e assaz bem apresentada entrevista ao catedrático Carlos Neto, investigador da Faculdade de Motricidade Humana: «É preciso tirar as crianças do sofá». Gostei dessa entrevista e do ar simpático do entrevistado. E, claro, das suas considerações:
            «Vivemos num mundo digital avassalador. As crianças vivem o corpo na ponta dos dedos. As novas tecnologias forçaram o corpo a funções não expectáveis. Nas primeiras idades, precisamos de mexer o corpo, ganhar autonomia, de arriscar, explorar, descobrir».
            É urgente que a criança volte a saber brincar ao ar livre, a participar mais, na Escola, nos projectos educativos: «Tem de haver mais tempo livre».
            Pode parecer mal que um docente afirme «o que hoje ensinamos na escola provavelmente não servirá para quase nada». Compreende-se, porém, porque se explica, logo a seguir, que «o brincar é talvez o comportamento que melhor ajuda a estruturar todas as competências essenciais para o futuro».
                                                                    José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 255, 2018-10-24, p. 6.

domingo, 21 de outubro de 2018

Gente… queremos gente!

             «Algarviota» sou, confesso. Daqueles que são algarvios de nascença e que, um dia, daqui zarparam e não ligaram mais nenhuma ao seu terrunho. Não foi bem assim, mas quase. Trouxeram-me meus pais para Cascais no final da década de 40; por aqui fiz os meus estudos, constituí família. Por aqui, nasceram meus filhos e netos; aqui repousam meus pais. Meu irmão já nasceu cascalense. Só fui ao Corotelo, a Faro e a Olhão nas férias grandes, até ao 2º ano (actual 7º). Depois, as idas eram para funerais…
            A aposentação, a possibilidade de colaboração com o VilAdentro e este nosso Noticias de S. Braz permitiram-me, nos últimos anos, estar mais próximo. E o que me dói? A observação frequente de minha tia Esperança:
            – Aquilo, onde a Chica mora, é um deserto!
            É.
            Demasiadas casas de nossos antepassados fechadas e a ameaçar ruína, campos por cultivar; alfarroba, azeitona, amêndoa e até figo por colher!... Vendas que fecharam. Já não há padeiro nem arreeiro. Já buzinas se não ouvem nem tilintar de guizos dos rebanhos…
Sim, amigo, precisávamos de a acolher! Mas quem há aí que se disponha?...
            Sinto-me culpado, porque nada fiz para que este panorama se criasse. Quisemos, meu irmão e eu, entregar à Misericórdia uma nesga de terreno que herdámos na serra; custava mais a transacção – que viria a ser, na verdade, mais um encargo para a Santa Casa – do que pagar o IMI dela durante 40 anos! Desistimos. E mantemos a nesga com um pinheiro e uma alfarrobeira…
            Quanto me agradaria saber que se encaravam sérias iniciativas para trazer mais gente para a nossa S. Brás!...
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 263, 20-10-2018, p. 13.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Certo duas vezes por dia

              De repente, o Vasco disparou a pergunta:
              – Qual é a coisa, qual é ela…
            Que é, que não é. Surgiram as hipóteses mais absurdas, tudo na brincadeira, porque a ignorância da resposta era geral.
            O Vasco foi fazendo caixinha: «Então ninguém sabe?» «Vão ver que é fácil muito fácil mesmo!».
            Ninguém sabia.
            – Vamos, desengoma-te lá na resposta!
            – O relógio parado!
            Era mesmo!
            E o pensamento voou dali para outros horizontes:
            · A nossa preocupação, quando temos visitas, de parar o relógio de sala, que herdámos e tem mais de cem anos, para que o toque das horas e das meias-horas não incomode quem vai dormir no quarto ao lado…
            · A guerra com o padre da minha terra, porque o sino da igreja de S. Romão, erguida a meia-encosta no vale que vai de S. Brás a Loulé, tocava, às horas, o «Ave de Fátima» mesmo durante a noite.
            · A saudade, por vezes aliviada aqui ou ali, do toque das ave-marias ao amanhecer, ao meio-dia e ao final da tarde, a pautar as tarefas agrícolas.
            · A surpresa, em Marrocos ou na Tunísia, quando, de repente, ecoava o convite à oração proclamado pelo almuadem do alto da mesquita (agora já automaticamente difundido por adequada aparelhagem sonora)
            · O costumeiro toque da sirene dos bombeiros a lembrar que é meio-dia ou, como em Peniche, à uma da tarde.
            · O toque doutra sirene, a das fábricas, como se vê em filmes antigos, e as mulheres a saírem de seguida, para a refeição ou para outra faina, a doméstica.
            Os toques, o constante tiquetaque de um relógio que marca as horas todas e não apenas como aquele do Vasco, que estava parado. O incessante escorrer do tempo e a inevitável frase de Michel Quoist:
            «Tens muito tempo à tua disposição, mas passas o tempo a perder o teu tempo».

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 740, 15-10-2018, p. 11.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Faróis de Cascais em exposição

              Joaquim Boiça, da Associação Cultural de Cascais, esteve na origem da exposição «Guardiões do Mar – Sentinelas da Noite», sobre os faróis da costa cascalense, que tem como objectivo mostrar como é e como foi essa “aventura de iluminar a noite".
Instantâneo da sessão de abertura da exposição

            Filho de faroleiros, de uma família de faroleiros, Joaquim Boiça viveu também no Farol de Santa Marta, onde se mostra agora – de modo especial e em bem interessantes painéis, legendados em língua portuguesa e em inglês – a história dos faróis da Guia, de Santa Marta e do Cabo Raso. A sua evolução arquitectónica e técnica em consonância com as épocas e os avanços tecnológicos. Uma viagem no tempo que, nas palavras de Joaquim Boiça, profundo conhecedor da matéria, nos deixou suspensos, aquando da singela cerimónia de abertura da exposição, no passado dia 4, quinta-feira, ao final da tarde, em que estiveram presentes o Comandante Conceição Dias, da Direção de Faróis (em representação do Exmo. Sr. Director de Faróis) e uma dezena de técnicos da autarquia cascalense.
            Lê-se, por exemplo, num dos painéis:
            «Distintos na sua função e época de fundação (séculos XVI-XIX), os faróis de Cascais são edifícios representativos da história do alumiamento e do génio associado à sua construção, desde a torre hexagonal do Farol da Guia – o mais notável testemunho da época iluminista em Portugal e um dos mais antigos em funcionamento em todo o mundo – até à torre metálica do Farol do Cabo Raso, exemplo marcante da arquitectura do ferro, passando pelo Farol Museu de Santa Marta, o primeiro do género e cuja torre é um dos elementos de maior força cenográfica e carga simbólica da paisagem ribeirinha portuguesa».
            Foram magnificamente aproveitadas para o efeito as paredes das instalações do Farol Museu de Santa Marta, proporcionando assim ao visitante, para além de uma paragem serena a ouvir o bulício das ondas, a possibilidade de se imaginar, noite afora, vigilante como os faroleiros, para que aos navegantes nada de mal venha a acontecer.
            «Guardiões do Mar – Sentinelas da Noite», um título deveras sugestivo; uma exposição a não perder!

                                                                       José d’Encarnação 
 Publicado em Cyberjornal, 2018-10-06:


Panorâmica parcial da exposição
A exposição mais de perto
Em 1º plano, à esquerda, um farol-cabana móvel.

O fogo na ordem do dia

             Não acredito no acaso. Esta semana preguicei na preparação da crónica e deixei-a para domingo de manhã. Começara-a já há algum tempo, o título era o que tem e o assunto a mais recente revista da Sociedade Estoril-Sol. Assim:

            «No rescaldo dos grandes incêndios de 2017 – a que poderia juntar-se o rescaldo do incêndio de Monchique e, ainda, o que destruiu, no Rio de Janeiro, todo um legado patrimonial guardado no Museu Nacional, boa parte dele ainda por estudar… – pensou a equipa da revista Egoísta, dirigida por Mário Assis Ferreira, dedicar ao fogo o seu número mais recente (64, Junho).
            Fogo no sentido concreto e fogo no sentido figurado também: paixão!
            Surpreende a capa, em que os editores, de resto, sempre se esmeraram e nunca deixaram de nos maravilhar. A desta é… uma caixa de fósforos! Eles lá estão e a lixa também!».
 
            Longe de mim estava, portanto, vir a ter a experiência de ver Cascais «acordar» neste domingo, 7, com o roncar dos aviões amarelos, a voarem rente às nossas casas, em demanda da baía e regressarem logo à zona do Abano para ali despejarem a carga. Escrevi «acordar», porque, na verdade, nesta zona ocidental de Cascais, não se acordou, porque não se dormiu, tal o pavor que de todos se apoderou perante a violência das chamas que, num ápice, desceram da Peninha em direcção à Biscaia, à Malveira, Figueira do Guincho e Almoinhas Velhas, atingindo madrugada fora a Crismina.
            Cascais viu, pela primeira vez, esses gigantes do ar – e esperamos que não tenha de voltar a vê-los. A mim recordou-me a noite de 20 para 21 de Agosto de 2005, quando nos bateram à porta do quarto da Estalagem Vale Manso, na margem esquerda da Barragem de Castelo do Bode. Fomos evacuados para o Hotel dos Templários, em Tomar. Regressámos no dia seguinte, assim que o perigo maior passara, e tivemos oportunidade de ver as imagens de agora: os canadairs e os helicópteros a baixarem sobre a barragem, abastecerem-se e seguirem.
            Cirurgicamente ateado, no cimo da Peninha, em noite de vento forte, as consequências só não foram piores, porque os nossos bombeiros estão adestrados, conhecem bem o terreno, a serra é o nosso ai-jesus que nos enche a vista a todas as horas e nos alerta ao mínimo sinal de anomalia. Por ela nos guiamos para saber se amanhã vai estar bom tempo ou se haverá ventania…
            Muito se escreverá sobre este assustador fim-de-semana na Imprensa e nas redes sociais e as televisões estiveram em directo praticamente a noite toda, apresentando as imagens possíveis.
            E com tudo isto ia-me esquecendo da Egoísta e das suas eloquentes imagens e considerações acerca doutros fogos, doutros extintores, doutros bombeiros, doutras reflexões…
            «Mesmo que faça frio, não aproximes do fogo um coração de neve», cita-se (p. 40), de José Tolentino Mendonça, o nosso bispo que é hoje responsável pela Biblioteca do Vaticano.
            «Borboletas / Como o fogo, duram o tempo que duram. / Duram pouco. Não se espera de uma labareda / que fique para sempre», proclamara, páginas atrás (na 37), Rui Caeiro.
            E fiquei a pensar: também este incêndio da serra, ao longo da noite que nunca mais findava, eu jamais quereria que ele ficasse para sempre. Longamente vão ficar, porém, as profundas cicatrizes abertas.
                                       José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 253, 2018-10-10, p. 6.



                                                              

A duna consolidada de Oitavos


Patrimoniices cascalenses 19

            Acertaram Vasco Silva e Armando Salgado: a fotografia mostra o corte feito, do lado nascente, na duna consolidada de Oitavos (zona da Marinha, a caminho do Guincho), por ocasião de nela se haver rasgado a estrada para os equipamentos hoteleiros construídos perto.
            A aparente «rocha» é constituída por finíssimas lamelas, ou seja, pelas sucessivas camadas de areia, que, mercê do vento, do calor e doutros agentes geomorfológicos, se consolidaram e ganharam essa posição oblíqua, como que a subir, por ser essa a orientação do vento.
            Estamos perante um monumento geológico classificado, amiúde visitado por turmas de estudantes universitários de Geologia e de Geografia.
            Há, no cimo da duna, um restaurante, que foi casa de chá e onde o presidente Américo Tomás, oficial da Marinha, tinha ‘aposentos’, uma vez que a Marinha superintendeu durante muito tempo a esse local, por ser estratégico na defesa da costa. E chegou a haver aí equipamentos específicos para esse efeito.
            Para quem se interessar pelos aspectos científicos directamente ligados, por exemplo, à datação da duna – terá a sua formação mais de 30 000 anos, se bem compreendi –, poderá ler o artigo «A Duna Consolidada de Oitavos (a Oeste de Cascais – Região de Lisboa) – a sua Datação pelo Método do Radiocarbono», que foi publicado na revista Comunicações Geológicas, 2006, tomo 93, p. 105-118, disponível na Internet.
                                                                        José d’Encarnação

sábado, 6 de outubro de 2018

Em bom ritmo, as obras da 2ª circular, em Cascais

            Muitos já, possivelmente, se terão interrogado: se há uma 3ª circular, em Cascais, onde é que está a 2ª, partindo-se do princípio que a 1ª é a Av. 25 de Abril?
            A 2ª circular começa precisamente quase no final poente da Av. 25 de Abril: é a Av. Infante D. Henrique, que, após o cruzamento com a Rua Joaquim Ereira, se continua pela Raul Solnado e ora termina na Rotunda dos Bombeiros Voluntários.
            Em princípio, deveria continuar até ao Bairro de S. José, com ligação a Alvide e à Av. de Sintra.
            A forma de passar pela Ribeira das Vinhas gerou, porém, controvérsia, nomeadamente tendo em conta dois aspectos: o económico (porque exigiria vultosa obra de engenharia) e o ecológico e paisagístico (porque seria prejudicial a uma área verde de características singulares).
            A polémica determinou, portanto, que o projecto fosse deixado de parte, embora, a nascente da Rotunda dos Bombeiros, o edifício fabril aí instalado acabasse por ser encerrado (e é o panorama degradado que lá se vê) e a zona entre os prédios setentrionais do Bairro do J. Pimenta (Alto da Pampilheira) e o actual Parque da Pampilheira (parque de estacionamento da Mobi Cascais) se mantivesse no Plano Director como «espaço canal», na perspectiva de a via futuramente chegar a ser construída.
            O certo é que, quiçá por se ter executado a obra do parque e assim se poderem aproveitar as movimentações de terras então feitas, o projecto, sem alardes, começou a ganhar concretização.
            O leito do ribeiro do Cobre, afluente da Ribeira das Vinhas, está agora a ser dotado de um túnel de cimento quadrangular, a fim de sobre ele se fazer o entroncamento de ligação da 2ª circular à Rua de Santana. Pensa-se que desta sorte irá ficar, ou seja, que não se projecta – pelo menos, nos tempos mais próximos – uma ligação mais além, passando por sobre a Ribeira das Vinhas.
            De qualquer modo, dir-se-á que – com alguma remodelação a fazer no pavimento da Rua de Santana, sobretudo em termos de largura, e a execução de uma rotunda no referido entroncamento – se aliviará substancialmente o trânsito em artérias como a Av. Adelino Amaro da Costa (sobretudo na chamada «rotunda de Birre») e a ligação da auto-estrada a Cascais Ocidental poderá via a ser feita, em alternativa, pela 3ª circular e pela Rua de Santana.
            Ilustra-se o texto com duas imagens: mostra, uma, o declive desde o Bairro Operário até à Rua de Santana (assinalada esta com uma seta), quando, à esquerda, ainda havia o olival e se não construíra o parque de estacionamento pago; documenta a segunda, tirada de poente para nascente, ao final da tarde do passado dia 4, o movimento das obras de engenharia para colocação da ‘tubagem’ destinada a canalizar as águas do ribeiro do Cobre sob as vias, em direcção à Ribeira das Vinhas.
            Se havemos de nos congratular com a solução? Sim. Primeiro, pelo descongestionamento de tráfego que vai originar; depois, porque tal implicará o rápido desaparecimento do degradado ‘esqueleto’ das antigas instalações da fábrica Pedro Pessoa, bem desagradável ‘cartão de visita’ para quem por ali demanda a vila.
            Não foi feito, que se saiba, um estudo do impacte ambiental – porventura obrigatório numa obra que vai implicar significativas alterações numa paisagem sensível; crê-se, porém, que os técnicos camarários responsáveis pelo empreendimento (até porque existe uma empresa municipal chamada Cascais Ambiente) saberão minimizar eventuais inconvenientes.
            Que se saiba, não foi o projecto sujeito a discussão pública, decerto porque se partiu do princípio de que já constava há muito dos planos municipais e era, por isso, ponto assente; de resto, nem organizações de defesa do ambiente nem representantes dos partidos da oposição se manifestaram contra.
            Teremos, certamente, obra concluída ainda este ano. E será mais um dos projectos longamente acalentados pela população a que este Executivo acaba por dar cumprimento. Em boa hora.
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 2018-10-05:

«O Marinheiro», de F. Pessoa, foi apresentado no Condes de Castro Guimarães

            Pensando bem, decerto não haveria melhor lugar para esta enigmática obra de Fernando Pessoa ter sido apresentada: o magnífico e bem aconchegado pátio interior do Museu dos Condes de Castro Guimarães. Exacto: aquele museu a cuja conservadoria Pessoa, um dia, concorreu, na esperança de, estando perto do mar e da Boca do Inferno, poderia intercalar as suas funções museológicas com a de escritor inspirado. E «O Marinheiro» prende-se com o mar.
            Escolheu, pois, muito bem Carlos Avilez o cenário. Nós, os espectadores ficámos à volta, nos quatro pórticos. A meio, a água continuou a sair da boca da carranca. Uma caveira a prender um pano preto que descia era a irmã que as três irmãs velavam, envoltas em negros véus, soturnas como a morte, desfiando considerações acerca da vida, das palavras, do sentido que poderia atribuir-se a tudo…
            José de Matos Oliveira, João Pecegueiro e Rafael Carvalho incarnaram essas irmãs, dialogantes, filósofas, que, de vez em quando, acariciavam a água corrente…
            «Drama estático» lhe chamou Fernando Pessoa; escreveu-o, diz-se, a 12 e 13 de Outubro de 1913 e poucas têm sido as encenações tentadas, uma vez que, na verdade, se requer um ambiente especial, como o do átrio do museu, de falas pausadas no embalo da fonte a correr.
            «As mãos não são verdadeiras nem reais… São mistérios que habitam na nossa vida… Às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus… Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se… Para onde se inclinam elas?…».
            Havia, de facto, uma vela com três pavios e as chamas bailavam de cá para lá, de lá para cá. E a caveira serena, imóvel.
            Parece que, além, no mar, há um marinheiro sonhador…
            «É sempre longe na minha alma… Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais ninguém olhasse…».
            E, quase a terminar, a mensagem:
            «É dia já. Vai acabar tudo… E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho…».
            Vi a estreia do espectáculo, no dia 27. No final, os actores estavam visivelmente contentes por terem participado nesta 157ª produção do TEC, integrada na programação de Cascais Capital Europeia da Juventude. No rosto dos espectadores, a serenidade de quem, perto do mar, foi obrigado a reflectir sobre o sentido das palavras e dos silêncios…
            Encenação de Carlos Avilez, como se disse; figurinos de Fernando Alvarez; pertenceu a Manuel Amorim a direcção de montagem.

                                                           José d’Encarnação

            Publicado em Cyberjornal, 2018-10-04:

 

           

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Edgardo Xavier brinda-nos com… loengo!

            Pus minúscula de propósito, embora saiba que mandam as regras que nome de livro se há-de escrever com maiúscula. A razão vem todinha logo no convite para a sessão de apresentação, a 3 do corrente mês de Outubro, a partir das 17 horas, na Casa de Angola, em Lisboa.
            Declara o Poeta que loengo «nasceu para a sede dos corpos sob a intensidade do calor», «uma delícia que arrepia», garantindo que «quem gosta nunca o esquecerá»…
            Conhecemos o pendor sensual da Poesia de Edgardo Xavier, «um lírico, no sentido pleno da palavra. O amor – platónico, carnal, devorador… – enche-lhe as páginas, como, real ou imaginariamente, lhe encherá por completo os dias» – escrevi em Agosto de 2017. E, a propósito de um dos seus últimos livros, Escrita Rouca, comentei:
             «Palavras poucas, medidas. Solilóquio quente, apaixonado, de total entrega. E assim se mata a solidão. E assim se proclama um erotismo suave, salvador – ainda que só de um dos amantes se oiça a voz! E que voz!...».
            Não admira, pois, que Rita Pais, no prefácio, confidencie que a obra de Edgardo exerça nela «um fascínio profundo, um quase voyeurismo inofensivamente perverso». Assim é, na poesia; assim será na prosa.
            Este Loengo, portanto, promete. Desde logo, essa ressonância da sua Angola natal, exótica, de avassaladores cheiros fortes no final das tardes a prolongar noite adentro…
            Editado pela Modocromia, este livro de contos vai, sem dúvida, seduzir o leitor. E volto a citar a prefaciadora:
            «Cabe-nos a nós, leitores ávidos deste Loengo que me deixa marcas fundas como cicatrizes que se cuidam com a ternura que só o amor conhece, usar a liberdade que, lendo-o, o autor nos permite para degustá-lo, desfrutá-lo e amá-lo como, por direito próprio, merece».
            Explica o autor, logo no início, o que se passou: onde trabalhava deixou de ter trabalho; sentia-se como que ‘na prateleira’ (para usar uma expressão do dia-a-dia); daí ter começado a pensar, a inventar histórias, como que ‘para passar o tempo’:
            «Algumas dessas histórias e breves contos recentes integram este livro. Não tenho compromisso com a realidade factual mas projectei-me nalguns destes contos.
            Nem sempre sou rigoroso porque a magia e o sonho me arrastam para utópicas paragens onde gosto de ficar. Sinto-me poeta mas ficaria feliz se o leitor me aceitasse também como escritor.»
            Aceitamo-lo. 81 contos, 81 perspicazes olhares em 234 páginas. Brevíssimos, lapidares, a maior parte de uma página só. A ler de uma só assentada, porque não se resiste; mas na vontade, sempre, de depois voltar atrás, para saborear o rigor da observação, da frase, da… farpa!
            Parabéns ao Autor, escritor! Aplauso à Modocromia por ter aceitado o desafio!

                                                          José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 03-10-2018:

terça-feira, 2 de outubro de 2018

A lâmpada e os pardais

            Tenho no meu quintal e na garagem – sou dos felizardos que podem usufruir dessas mordomias… – várias osgas de estimação. E digo «várias», porque já vi pequenitas e já vi, em sítios diferentes, outras gorduchas, com ar de matronas. Não sei mesmo quantas são. Apenas acrescento, desde já, que, em pequeno, elas não deveriam durar muito, porque o meu divertimento seria o de pegar num palanco, fazer-lhe um subtil laço na ponta e, mui sorrateiramente, conseguir enfiá-lo na cabeça do bichinho e… laçá-lo, qual cowboy a vaca tresmalhada!…
            Osga era, para mim, bicho peçonhento, pegajoso, que não mereceria viver. Hoje, deixo-as à vontade, até porque também na garagem tive de guardar livros e pedi à osga-mãe que adestrasse as filhotas na caça às traças, essas, sim, minhas inimigas figadais!
            Surgiu-me esta ideia das osgas porque o Celestino Costa tem uma figueira de estimação. Figos moscatéis bem saborosos. Cortou-a por cima, para que alargasse, escorou as pernadas e, assim, escusa de se empoleirar numa escada para apanhar os figos, que estão à mão de semear, basta um cãibo!
            No entanto, se quer figos, tem de se levantar às quatro da madrugada, porque, às cinco, já lá estão, na figueira, os melros, de bico forte, a picarem mesmo aqueles figuinhos que ainda não estão bem maduros. Tudo lhes serve para se alimentarem, agora que os campos outrora semeados e com vedações de valados cheios de silvas, abrunheiros e murtinhos, só têm é casas e não lhes oferecem, portanto, o farnel quotidiano.
            Não longe do Celestino mora o Clérigo, canteiro como ele, que lhe contou de uma das suas admirações de não há muito. É que começou a ver, à noite, os pardais junto à lâmpada do candeeiro de iluminação pública ao pé de casa. Estavam à caça dos insectos que se sentiam atraídos pela luz!
«Espantando os pardais» - José Malhoa (1904)
            Dantes, encarrapitavam-se nas espigas de trigo ou de cevada e até os moços pequenos eram mandados pelos pais em batuque de latas velhas para os assustar, imagem que José Malhoa perpetuou no seu quadro de 1904, ou punham-se espantalhos em figura de gente com roupas velhas e chapéu...
            E perorava Celestino, poeta-pensador, nos seus 85 anos:
            ˗˗ Agora, já não há quem semeie! E, se calhar, daqui a uns cem anos, os cientistas são capazes de dizer que a dieta principal dos pardais era constituída por insectos voadores!...

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 739, 01-10-2018, p. 10.