quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O fogo na ordem do dia

             Não acredito no acaso. Esta semana preguicei na preparação da crónica e deixei-a para domingo de manhã. Começara-a já há algum tempo, o título era o que tem e o assunto a mais recente revista da Sociedade Estoril-Sol. Assim:

            «No rescaldo dos grandes incêndios de 2017 – a que poderia juntar-se o rescaldo do incêndio de Monchique e, ainda, o que destruiu, no Rio de Janeiro, todo um legado patrimonial guardado no Museu Nacional, boa parte dele ainda por estudar… – pensou a equipa da revista Egoísta, dirigida por Mário Assis Ferreira, dedicar ao fogo o seu número mais recente (64, Junho).
            Fogo no sentido concreto e fogo no sentido figurado também: paixão!
            Surpreende a capa, em que os editores, de resto, sempre se esmeraram e nunca deixaram de nos maravilhar. A desta é… uma caixa de fósforos! Eles lá estão e a lixa também!».
 
            Longe de mim estava, portanto, vir a ter a experiência de ver Cascais «acordar» neste domingo, 7, com o roncar dos aviões amarelos, a voarem rente às nossas casas, em demanda da baía e regressarem logo à zona do Abano para ali despejarem a carga. Escrevi «acordar», porque, na verdade, nesta zona ocidental de Cascais, não se acordou, porque não se dormiu, tal o pavor que de todos se apoderou perante a violência das chamas que, num ápice, desceram da Peninha em direcção à Biscaia, à Malveira, Figueira do Guincho e Almoinhas Velhas, atingindo madrugada fora a Crismina.
            Cascais viu, pela primeira vez, esses gigantes do ar – e esperamos que não tenha de voltar a vê-los. A mim recordou-me a noite de 20 para 21 de Agosto de 2005, quando nos bateram à porta do quarto da Estalagem Vale Manso, na margem esquerda da Barragem de Castelo do Bode. Fomos evacuados para o Hotel dos Templários, em Tomar. Regressámos no dia seguinte, assim que o perigo maior passara, e tivemos oportunidade de ver as imagens de agora: os canadairs e os helicópteros a baixarem sobre a barragem, abastecerem-se e seguirem.
            Cirurgicamente ateado, no cimo da Peninha, em noite de vento forte, as consequências só não foram piores, porque os nossos bombeiros estão adestrados, conhecem bem o terreno, a serra é o nosso ai-jesus que nos enche a vista a todas as horas e nos alerta ao mínimo sinal de anomalia. Por ela nos guiamos para saber se amanhã vai estar bom tempo ou se haverá ventania…
            Muito se escreverá sobre este assustador fim-de-semana na Imprensa e nas redes sociais e as televisões estiveram em directo praticamente a noite toda, apresentando as imagens possíveis.
            E com tudo isto ia-me esquecendo da Egoísta e das suas eloquentes imagens e considerações acerca doutros fogos, doutros extintores, doutros bombeiros, doutras reflexões…
            «Mesmo que faça frio, não aproximes do fogo um coração de neve», cita-se (p. 40), de José Tolentino Mendonça, o nosso bispo que é hoje responsável pela Biblioteca do Vaticano.
            «Borboletas / Como o fogo, duram o tempo que duram. / Duram pouco. Não se espera de uma labareda / que fique para sempre», proclamara, páginas atrás (na 37), Rui Caeiro.
            E fiquei a pensar: também este incêndio da serra, ao longo da noite que nunca mais findava, eu jamais quereria que ele ficasse para sempre. Longamente vão ficar, porém, as profundas cicatrizes abertas.
                                       José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 253, 2018-10-10, p. 6.



                                                              

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