sábado, 6 de outubro de 2018

«O Marinheiro», de F. Pessoa, foi apresentado no Condes de Castro Guimarães

            Pensando bem, decerto não haveria melhor lugar para esta enigmática obra de Fernando Pessoa ter sido apresentada: o magnífico e bem aconchegado pátio interior do Museu dos Condes de Castro Guimarães. Exacto: aquele museu a cuja conservadoria Pessoa, um dia, concorreu, na esperança de, estando perto do mar e da Boca do Inferno, poderia intercalar as suas funções museológicas com a de escritor inspirado. E «O Marinheiro» prende-se com o mar.
            Escolheu, pois, muito bem Carlos Avilez o cenário. Nós, os espectadores ficámos à volta, nos quatro pórticos. A meio, a água continuou a sair da boca da carranca. Uma caveira a prender um pano preto que descia era a irmã que as três irmãs velavam, envoltas em negros véus, soturnas como a morte, desfiando considerações acerca da vida, das palavras, do sentido que poderia atribuir-se a tudo…
            José de Matos Oliveira, João Pecegueiro e Rafael Carvalho incarnaram essas irmãs, dialogantes, filósofas, que, de vez em quando, acariciavam a água corrente…
            «Drama estático» lhe chamou Fernando Pessoa; escreveu-o, diz-se, a 12 e 13 de Outubro de 1913 e poucas têm sido as encenações tentadas, uma vez que, na verdade, se requer um ambiente especial, como o do átrio do museu, de falas pausadas no embalo da fonte a correr.
            «As mãos não são verdadeiras nem reais… São mistérios que habitam na nossa vida… Às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus… Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se… Para onde se inclinam elas?…».
            Havia, de facto, uma vela com três pavios e as chamas bailavam de cá para lá, de lá para cá. E a caveira serena, imóvel.
            Parece que, além, no mar, há um marinheiro sonhador…
            «É sempre longe na minha alma… Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais ninguém olhasse…».
            E, quase a terminar, a mensagem:
            «É dia já. Vai acabar tudo… E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho…».
            Vi a estreia do espectáculo, no dia 27. No final, os actores estavam visivelmente contentes por terem participado nesta 157ª produção do TEC, integrada na programação de Cascais Capital Europeia da Juventude. No rosto dos espectadores, a serenidade de quem, perto do mar, foi obrigado a reflectir sobre o sentido das palavras e dos silêncios…
            Encenação de Carlos Avilez, como se disse; figurinos de Fernando Alvarez; pertenceu a Manuel Amorim a direcção de montagem.

                                                           José d’Encarnação

            Publicado em Cyberjornal, 2018-10-04:

 

           

1 comentário:

  1. Não deve ter sido fácil a encenação do "drama estático"de Pessoa. Mas por este texto é fácil perceber que, uma vez mais, a mestria de Carlos Avilez conseguiu, através dos seus actores, envolver o público na magia reflexiva das palavras, na reflexão dos mistérios da vida. Um abraço da MHV.

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