quarta-feira, 20 de março de 2019

A Penélope dos nossos dias

              É por de mais conhecida a história de Penélope. Demorava seu marido, Ulisses, ido para a guerra de Tróia, e antojou-se à família que o melhor era Penélope voltar a casar. Fiel ao marido que amava, Penélope, assediada por muitos pretendentes, acabou por aceitar a insistente proposta, mas impôs uma condição: precisava de acabar primeiro o manto com que seu pai se haveria de amortalhar. Acedeu o pai e Penélope desmanchava de noite o que de dia ia tecendo, de forma que dificilmente se encarava o dia em que ela estaria disponível para novos esponsais…
            Sabe-se quanto essas histórias antigas – esta narrada na Odisseia, um dos poemas maiores da Humanidade, atribuído a Homero – acabam por ter sempre um conteúdo eterno e uma actualidade flagrante. E, assim, atendendo ao testemunho dado por esta insigne personagem, que fazia de dia e desfazia de noite, também não há motivo para as interrogações que, em termos de obras públicas, amiúde o vulgar cidadão que nada percebe desses tratos se põe:
            – Então, inda há pouco alcatroaram a estrada e só agora é que se lembram que ali tinham de fazer também passar a rede eléctrica subterrânea?
            Rede eléctrica posta, alcatrão reposto, é bem possível que, de novo, a estrada se esventre, porque faltava a tubagem para o gás canalizado!... E sorte haverá se, por não darem atenção a eventuais plantas de localização, uma picaretada não rebente com o cano da água e venha daí farto repuxo!... «Vossemecê bem me disse que por i passava um cano, mas não falou das horas a que ele passava!...».
            Também eu me interrogava, até que me explicaram que era assim mesmo: no orçamento da empreitada estava sempre incluída a destruição do feito e a reposição subsequente. Não havia nada a fazer! A partir daí, não mais me ralei com esses casos e meti a viola no saco.
            Hoje, porém, que o leitor me desculpe, tirei-a. ¿Então não é que andaram uns operários, ao vento e até à chuva, durante semanas, a pôr todo direitinho o lancil no novo troço da 2ª circular entre a Adelino Amaro da Costa, em Cascais, e a Rua de Santana, e, agora, um senhor, sempre cheio de dores nas costas (pudera!), de disco eléctrico nas mãos, deu em separar o lancil em toda a sua extensão, pedra a pedra, decerto porque os pobrezinhos dos seus predecessores não acertaram no nível e fizeram asneira?
Lancis em baixo, lancis em cima...
            Ai, Penélope, Penélope, se hoje viveras, verias como a tua malha nada era em comparação com as malhas que ora este mui ilustre Império tece!...
                       
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 273, 2019-03-20, p. 6.

6 comentários:

  1. Que texto delicioso. E que bem ilustra a irresponsabilidade que medra, por aí.
    Construir, destruir, talvez seja um processo rentável para alguém...
    É uma pena que, de forma submissa, tenhamos que pagar os custos da incompetência.
    Um abraço e parabéns.
    VHM

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  2. Alguém também me comentou o seguinte: «Lembra-me um filme antigo, em que um indivíduo, com muita naturalidade, destruía pedaços de praças e ruas da cidade com um martelo pneumático. Ninguém lhe pedia contas, ou perguntava para quê, a obra. Devia ser alguma ordem superior... E o trânsito ficava um caos, a circulação não se podia fazer... Todos os carneirinhos, ordeiramente, esperavam horas e horas até perceberem que teriam que deixar os automóveis ou inverter a marcha, quando conseguiam. Um dia, as obras paravam, as crateras permaneciam e vinha-se a saber que não houvera ordem superior alguma... O homem era maluco e tinha vontade de furar. E pronto.»

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  3. Agradeço aos colegas e amigos que tiveram a gentileza de comentar:

    Maria Helena Coelho, 20 de Março de 2019 20:21
    Boa malha, caro Amigo.

    Saul Gomes, 20 de Março de 2019 21:46
    Muito bom!

    MHV, 21 de Março de 2019 18:41
    Pois são a analogia com Penélope (que não lembraria senão a uma mente brilhante) e o veio de fino humor que conferem tanta beleza ao texto.

    Luís Torgal, 21 de Março de 2019 20:14
    Na verdade, há muitas situações como esta. Há muitos anos! Assisti a várias, verdadeiramente surpreendido. O meu amigo Amaral nos tempos difíceis dos anos 60 dizia sentencioso: "A hora é grave e de surpresas". Agora já nada nos surpreende.

    José Azevedo Silva, 22 de Março de 2019 16:32
    Grato por me avivares a memória acerca do maravilhoso mito de Penélope, servido, em bandeja de prata, pelo saboroso manjar da tua prosa.
    É espantoso como certos detentores do poder de decidir, hoje, conseguem, sem o saber, papaguear o mito de Penélope, no faz e desfaz de certas obras públicas, por conta dos nossos impostos.

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  4. Helena Catarino, 24 de Março de 2019 15:00
    Olá!...
    Só mesmo tu para te lembrares do tear da Penélope!...
    Mas, como diz o outro: "fazer e desfazer tudo é trabalho". E, assim, este dito popular tornou-se uma máxima das políticas públicas e privadas do nosso País. Portanto, de Norte a Sul, essa "máxima" tornou-se "norma", ou até poderá ser uma "normativa" e requisito para manter os trabalhadores ocupados?!... Como Penélope!...

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  5. Regina Anacleto, 31 de Março de 2019 20:00
    Li com atenção a sua “Penélope” e devo dizer-lhe que esta maneira de agir é algo que me arrepia. Já há largos anos faziam-se em Coimbra valas de saneamento e havia sido adjudicada, se a memória me não falha, uma empreitada destinada a colocar os fios elétricos debaixo do solo. Os buracos mantinham-se abertos. Fui almoçar e chegou-me aos ouvidos a conversa de dois senhores que estavam na mesa contígua. Um perguntava ao outro: quando tapas as valas, para eu as poder ir abrir? Fiquei de boca aberta.

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