É
por de mais conhecida a história de Penélope. Demorava seu marido, Ulisses, ido
para a guerra de Tróia, e antojou-se à família que o melhor era Penélope voltar
a casar. Fiel ao marido que amava, Penélope, assediada por muitos pretendentes,
acabou por aceitar a insistente proposta, mas impôs uma condição: precisava de acabar primeiro o manto com que
seu pai se haveria de amortalhar. Acedeu o pai e Penélope desmanchava de noite
o que de dia ia tecendo, de forma que dificilmente se encarava o dia em que ela
estaria disponível para novos esponsais…
Sabe-se
quanto essas histórias antigas – esta narrada na Odisseia, um dos poemas maiores da Humanidade, atribuído a Homero – acabam por ter sempre um conteúdo
eterno e uma actualidade flagrante. E, assim, atendendo ao testemunho dado por
esta insigne personagem, que fazia de dia e desfazia de noite, também não há
motivo para as interrogações que, em termos de obras públicas, amiúde o vulgar
cidadão que nada percebe desses tratos se põe:
–
Então, inda há pouco alcatroaram a estrada e só agora é que se lembram que ali
tinham de fazer também passar a rede eléctrica subterrânea?
Rede
eléctrica posta, alcatrão reposto, é bem possível que, de novo, a estrada se
esventre, porque faltava a tubagem para o gás canalizado!... E sorte haverá se,
por não darem atenção a eventuais
plantas de localização, uma
picaretada não rebente com o cano da água e venha daí farto repuxo!...
«Vossemecê bem me disse que por i passava um cano, mas não falou das horas a
que ele passava!...».
Também
eu me interrogava, até que me explicaram que era assim mesmo: no orçamento da
empreitada estava sempre incluída a destruição
do feito e a reposição subsequente.
Não havia nada a fazer! A partir daí, não mais me ralei com esses casos e meti
a viola no saco.
Hoje,
porém, que o leitor me desculpe, tirei-a. ¿Então não é que andaram uns
operários, ao vento e até à chuva, durante semanas, a pôr todo direitinho o
lancil no novo troço da 2ª circular entre a Adelino Amaro da Costa, em Cascais,
e a Rua de Santana, e, agora, um senhor, sempre cheio de dores nas costas
(pudera!), de disco eléctrico nas mãos, deu em separar o lancil em toda a sua
extensão, pedra a pedra, decerto porque os pobrezinhos dos seus predecessores
não acertaram no nível e fizeram asneira?
Lancis em baixo, lancis em cima... |
Ai,
Penélope, Penélope, se hoje viveras, verias como a tua malha nada era em
comparação com as malhas que ora
este mui ilustre Império tece!...
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 273, 2019-03-20, p. 6.
Que texto delicioso. E que bem ilustra a irresponsabilidade que medra, por aí.
ResponderEliminarConstruir, destruir, talvez seja um processo rentável para alguém...
É uma pena que, de forma submissa, tenhamos que pagar os custos da incompetência.
Um abraço e parabéns.
VHM
Alguém também me comentou o seguinte: «Lembra-me um filme antigo, em que um indivíduo, com muita naturalidade, destruía pedaços de praças e ruas da cidade com um martelo pneumático. Ninguém lhe pedia contas, ou perguntava para quê, a obra. Devia ser alguma ordem superior... E o trânsito ficava um caos, a circulação não se podia fazer... Todos os carneirinhos, ordeiramente, esperavam horas e horas até perceberem que teriam que deixar os automóveis ou inverter a marcha, quando conseguiam. Um dia, as obras paravam, as crateras permaneciam e vinha-se a saber que não houvera ordem superior alguma... O homem era maluco e tinha vontade de furar. E pronto.»
ResponderEliminarAgradeço aos colegas e amigos que tiveram a gentileza de comentar:
ResponderEliminarMaria Helena Coelho, 20 de Março de 2019 20:21
Boa malha, caro Amigo.
Saul Gomes, 20 de Março de 2019 21:46
Muito bom!
MHV, 21 de Março de 2019 18:41
Pois são a analogia com Penélope (que não lembraria senão a uma mente brilhante) e o veio de fino humor que conferem tanta beleza ao texto.
Luís Torgal, 21 de Março de 2019 20:14
Na verdade, há muitas situações como esta. Há muitos anos! Assisti a várias, verdadeiramente surpreendido. O meu amigo Amaral nos tempos difíceis dos anos 60 dizia sentencioso: "A hora é grave e de surpresas". Agora já nada nos surpreende.
José Azevedo Silva, 22 de Março de 2019 16:32
Grato por me avivares a memória acerca do maravilhoso mito de Penélope, servido, em bandeja de prata, pelo saboroso manjar da tua prosa.
É espantoso como certos detentores do poder de decidir, hoje, conseguem, sem o saber, papaguear o mito de Penélope, no faz e desfaz de certas obras públicas, por conta dos nossos impostos.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarHelena Catarino, 24 de Março de 2019 15:00
ResponderEliminarOlá!...
Só mesmo tu para te lembrares do tear da Penélope!...
Mas, como diz o outro: "fazer e desfazer tudo é trabalho". E, assim, este dito popular tornou-se uma máxima das políticas públicas e privadas do nosso País. Portanto, de Norte a Sul, essa "máxima" tornou-se "norma", ou até poderá ser uma "normativa" e requisito para manter os trabalhadores ocupados?!... Como Penélope!...
Regina Anacleto, 31 de Março de 2019 20:00
ResponderEliminarLi com atenção a sua “Penélope” e devo dizer-lhe que esta maneira de agir é algo que me arrepia. Já há largos anos faziam-se em Coimbra valas de saneamento e havia sido adjudicada, se a memória me não falha, uma empreitada destinada a colocar os fios elétricos debaixo do solo. Os buracos mantinham-se abertos. Fui almoçar e chegou-me aos ouvidos a conversa de dois senhores que estavam na mesa contígua. Um perguntava ao outro: quando tapas as valas, para eu as poder ir abrir? Fiquei de boca aberta.