quinta-feira, 7 de março de 2019

Aquele abraço cascalense!

            Saí com a ideia clara de que não assistira a um concerto nem a uma sessão de fados, embora amiúde, durante o espectáculo, eu tivesse sentido bem nítido o aconchegado calor de uma noite em mui aconchegada casa de fados.
          Não, nem foi noite nem era casa. O virtuosismo dos músicos Diogo Quadros, Francisco Zanatti e Luís Roquette (um guitarra de mui elevada craveira!), a sua familiaridade com os cantores, a ternura que da actuação destes sempre se desprendeu, num à-vontade dificilmente patente em espectáculos ao vivo, a comunhão de pronto conseguida com o público que por completo enchia o Auditório da Senhora da Boa Nova – foi tudo isso um enorme abraço cascalense em torno do núcleo que, na nossa vila, diariamente, recolhe e distribui por famílias necessitadas os restos de alimentos doutra forma destinados ao total desaproveitamento.
            Da organização Rǝfood veio o nome deste concerto anual – Rǝfado – que, no sábado, 2 de Março, reuniu, das 15 às 19 horas (!), artistas oriundos ou radicados, na sua maioria, no concelho de Cascais. Apresentou-os, com o saber que se lhe reconhece, Manuela Rama.
            Perdoem-me o parêntesis: mas também isso me levou aos anos 60, do Cascais das casas de fado fora de portas. Sim, bem sei. A maior parte destes artistas ainda não tinham nome ou nem sequer eram nascidos, mas beberam nessa tradição e, sobretudo, souberam deixar de parte aquelas poses altaneiras que de vez em quando por aí surgem. Não! Nada disso! Tudo ali foi chão, intimidade, alegre desejo de graciosamente contribuir para uma causa solidária. Não admira que, nessa tarde, que mais pareceu noite e cujas quatro horas de música num ápice ousaram passar, tenham deliciado não apenas os espectadores mas, de modo muito especial, Hunter Halder, o fundador deste movimento solidário, e Teresa Pedrosa, o rosto do núcleo da Rǝfood Cascais. Aliás, em jeito de comentário ao espectáculo, Teresa Pedrosa escreveu-me:
            «Na verdade, julgo que decerto vamos, até final de 2019, ultrapassar as quase 46 000 refeições distribuídas em 2018, pois iremos também ultrapassar os 220 Voluntários que temos, com a inscrição de novos elementos resultantes também do nosso Espectáculo Solidário “Rǝfado”, pois foram bastantes as pessoas que se mostraram interessadas».

O espectáculo
            Justo é, portanto, que se dê conta do que se passou, explicando-se desde logo que o guião foi muito bem concebido, uma vez que cada artista coroava a sua actuação de três temas com uma marcha ou uma cantiga em que todos os ouvintes mui gostosamente participaram – e assim se cimentou comunidade!
            Por outro lado – e esse é um dado que importa salientar! – além da amizade que une os artistas que actuaram, a ‘escolha’ recaiu sobre um conjunto assaz jovem, bem disposto e já, apesar da idade, nomes grandes no nosso meio.
            Começámos com a exibição do grupo Dance Blue, da Amoreira. Onze meninas, numa singela mas bem ajustada coreografia, deliciaram-nos a sublinhar com o bem ritmado movimento «Ó gente da minha terra!». Um grupo que mereceu os aplausos. É de ter os olhos nele!
            Joana Amendoeira, de longo vestido vermelho: «Aquela rua», «Trago fado nos sentidos» (também de Amália) e «Marcha do Centenário».
            A jovem Teresinha Landeiro, calcas à boca-de-sino, longa blusa de bolinhas branca, toda ela vibrou (Ah! Fadista!...): «O tempo passa por nós», o seu «Malmequer» (Um amor tão pequenino / Ficou naquele jardim / Agora já não há flor / Que te faça lembrar de mim»), a marcha «Alfama».
            Gonçalo CastelBranco, cá da terra, habituado a actuar com os músicos ali presentes: «Ser boémio e ser fadista / A mim não me dá cuidado»; «Pedi a Nosso Senhor para que fosse um grande amor» (letra da avó dele e música de Tozé Brito); e a paixão pelo mar: «Ó onda do alto mar / Beijas as praias sem fim / Vem meu amor ensinar / Como há-de beijar-me a mim!».
            Carmo Moniz Pereira, jovem, bonito sorriso, calças pretas, blusa preta brilhante, arrecadas prateadas cintilantes, o cinto de pano preto caindo em laço sobre a anca esquerda, clima deveras descontraído: «Nem um adeus me disseste / Nunca vi mais triste dia!»; «Não foste eu nem fui eu / Mas aconteceu». A terminar, a marcha concebida por seu avô: «Lisboa vem prá rua!».
            António Pinto Basto: «Ó rosa branca, delicada e pura!». O segundo fado, que inda está para sair, alegre jogo de palavras: «Eu já não sei que faça para que a Graça, ao vê-la passar na Graça… é gente que não tem graça». A marcha final: «Ó Portela, vem à janela!».
            Silvana Peres entrou pelos fundos, já os músicos haviam começado. Blusa preta a envolver grande gargantilha prateada; saia branca plissada, faixa preta e luvas pretas também, com brilhantes. No primeiro fado, assim à maneira antiga, aquelas histórias de ciúmes; o segundo teve letra de Zé Carlos Malato «Tenho medo de dormir»; a concluir, «Lisboa à noite», naturalmente acompanhado pelo público, como ia acontecendo com todos.
            Após o intervalo, a palavra ao fundador, Hunter Halder, que incitou todos e cada um a juntarem-se a esta campanha: 2 horas por semana dão para alimentar 10 pessoas! E manifestou gratidão por todo o apoio que a Rǝfood tem recebido.
            Ana Lains, 39 anos, de preto e faixa vermelha, foi acompanhada ao piano pelo marido. «Por te ver eu choro agora»; Senhora do Almortão (com adufe, uma interpretação muito pessoal, magnífica, com arranjo do marido); terminou com um fado menor, onde confessava, a dado passo: «Não sei bem se inda te quero».
            A jovem Tânia Oleiro, calças pretas, blusa negra brilhante, professora de Matemática, ouvia a mãe cantar e deixou-se enfeitiçar. «A minha alma a soluçar as mágoas que vou cantando»; o primeiro fado que aprendeu, as cerejas que a mãe lhe punha como brincos. Está feliz em Cascais, evoca Manuel de Almeida, canta de olhos semicerrados «com a mais sentida dor».
            Rodrigo Costa Félix, 47 anos completados no dia 20 de Fevereiro, calças de ganga azuis, camisa branca, casaco casual, de olhos semicerrados também, enlevado no que canta. «Agora que te não quero / Vejo as figuras que fiz»; «Não digas nada, amor, não digas nada / Não quero ouvir sequer a tua voz / Que a tua voz, amor, ficou gravada / Nesse mero acaso que fomos nós». «Lisboa, menina e moça», a concluir – com o publico.
            Maria Ana Bobone, fato-macaco preto, casaquinho da mesma cor, cabelos lisos sobre o peito. Sentou-se ao piano. «Que Deus me perdoe»: “Se a minh'alma fechada /se pudesse mostrar / e o que eu sofro calada / se pudesse contar”. Era para ser só ao piano, mas o guitarra e o viola não resistiram e, como quem não quer a coisa, devagarinho, entraram e foram sucesso também! Momento de encantar! Foi depois a história do namorico entre a Rita que é peixeira e o Chico que é pescador. Por fim, «Ó noite de Santo António!» – e toca a marchar!
            Pedro Moutinho lançou nestes dias o «Um Fado ao Contrário». Natural de Oeiras, onde nasceu a 11 de Novembro de 1976. «Têm a cor do ciúme / Eternos como o perfume / à praia não volto mais». Depois: «Naquela noite sem lua / Entrei pela tua rua / em sentido proibido». No fim, com a assistência, “Bairro Alto aos seus amores tão dedicado».
            Maria João Quadros, bem à fadista, de xaile e arrecadas. Em «Quem por amor se perdeu» até pasmou com o requinte do acompanhamento com que os músicos a brindaram! «Ó meu amor, nunca te esqueças de mim / O meu coração esmorece e bem padece longe de ti». E, a terminar, a evocação da Lisboa boémia e fadista, da velha tendinha…
A Comissão Organizadora e os músicos
No final, o grupo dos colaboradores
               
                    O agradecimento
 
             Se um ramo de flores premiou cada um dos cantores, no final da tarde, era já noite, as 19 horas estavam quase a bater, a Comissão Organizadora veio ao palco agradecer a todos os que tão brilhantemente haviam trabalhado para que o êxito da sessão tivesse sido tão grande. E ao público pelo calor dos aplausos jamais regateados.
            Cá fora, a aragem bem fresquinha teve muita dificuldade em nos roubar o forte aconchego sentido…

                                                           José d’Encarnação

1 comentário:

  1. Quando as pessoas se juntam por causas mais que justas e a boa música engrandece as boas obras, só podem acontecer momentos mágicos como os que tão bem descreve.
    Bem haja por partilhar connosco esses momentos e as suas emoções.
    Um abraço
    M.V.P.

    ResponderEliminar