Não,
nem foi noite nem era casa. O virtuosismo dos músicos Diogo Quadros, Francisco
Zanatti e Luís Roquette (um guitarra de mui elevada craveira!), a sua
familiaridade com os cantores, a ternura que da actuação destes sempre se
desprendeu, num à-vontade dificilmente patente em espectáculos ao vivo, a comunhão
de pronto conseguida com o público que por completo enchia o Auditório da
Senhora da Boa Nova – foi tudo isso um enorme abraço cascalense em torno do
núcleo que, na nossa vila, diariamente, recolhe e distribui por famílias necessitadas
os restos de alimentos doutra forma destinados ao total desaproveitamento.
Da
organização Rǝfood veio o nome deste concerto anual – Rǝfado – que, no sábado,
2 de Março, reuniu, das 15 às 19 horas (!), artistas oriundos ou radicados, na
sua maioria, no concelho de Cascais. Apresentou-os, com o saber que se lhe
reconhece, Manuela Rama.
Perdoem-me
o parêntesis: mas também isso me levou aos anos 60, do Cascais das casas de
fado fora de portas. Sim, bem sei. A maior parte destes artistas ainda não
tinham nome ou nem sequer eram nascidos, mas beberam nessa tradição e,
sobretudo, souberam deixar de parte aquelas poses altaneiras que de vez em
quando por aí surgem. Não! Nada disso! Tudo ali foi chão, intimidade, alegre
desejo de graciosamente contribuir para uma causa solidária. Não admira que, nessa
tarde, que mais pareceu noite e cujas quatro horas de música num ápice ousaram
passar, tenham deliciado não apenas os espectadores mas, de modo muito especial,
Hunter Halder, o fundador deste movimento solidário, e Teresa Pedrosa, o rosto
do núcleo da Rǝfood Cascais. Aliás, em jeito de comentário ao espectáculo, Teresa
Pedrosa escreveu-me:
«Na
verdade, julgo que decerto vamos, até final de 2019, ultrapassar as quase
46 000 refeições distribuídas em 2018, pois iremos também ultrapassar os
220 Voluntários que temos, com a inscrição de novos elementos resultantes
também do nosso Espectáculo Solidário “Rǝfado”, pois foram bastantes as pessoas
que se mostraram interessadas».
O espectáculo
Justo
é, portanto, que se dê conta do que se passou, explicando-se desde logo que o
guião foi muito bem concebido, uma vez que cada artista coroava a sua actuação
de três temas com uma marcha ou uma cantiga em que todos os ouvintes mui
gostosamente participaram – e assim se cimentou comunidade!
Por
outro lado – e esse é um dado que importa salientar! – além da amizade que une
os artistas que actuaram, a ‘escolha’ recaiu sobre um conjunto assaz jovem, bem
disposto e já, apesar da idade, nomes grandes no nosso meio.
Começámos
com a exibição do grupo Dance Blue, da Amoreira. Onze meninas, numa singela mas
bem ajustada coreografia, deliciaram-nos a sublinhar com o bem ritmado
movimento «Ó gente da minha terra!». Um grupo que mereceu os aplausos. É de ter
os olhos nele!
Joana
Amendoeira, de longo vestido vermelho: «Aquela rua», «Trago fado nos sentidos»
(também de Amália) e «Marcha do Centenário».
A
jovem Teresinha Landeiro, calcas à boca-de-sino, longa blusa de bolinhas branca,
toda ela vibrou (Ah! Fadista!...): «O
tempo passa por nós», o seu «Malmequer» (Um amor tão pequenino / Ficou naquele jardim / Agora já não há flor / Que
te faça lembrar de mim»), a marcha «Alfama».
Gonçalo CastelBranco, cá
da terra, habituado a actuar com os músicos ali presentes: «Ser boémio e ser
fadista / A mim não me dá cuidado»; «Pedi a Nosso Senhor para que fosse um
grande amor» (letra da avó dele e música de Tozé Brito); e a paixão pelo mar: «Ó
onda do alto mar / Beijas as praias sem fim / Vem meu amor ensinar / Como há-de
beijar-me a mim!».
Carmo Moniz Pereira,
jovem, bonito sorriso, calças pretas, blusa preta brilhante, arrecadas
prateadas cintilantes, o cinto de pano preto caindo em laço sobre a anca
esquerda, clima deveras descontraído: «Nem um adeus me disseste / Nunca vi mais
triste dia!»; «Não foste eu nem fui eu / Mas aconteceu». A terminar, a marcha concebida
por seu avô: «Lisboa vem prá rua!».
António Pinto Basto: «Ó
rosa branca, delicada e pura!». O segundo fado, que inda está para sair, alegre
jogo de palavras: «Eu já não sei que faça para que a Graça, ao vê-la passar na
Graça… é gente que não tem graça». A marcha final: «Ó Portela, vem à janela!».
Silvana Peres entrou
pelos fundos, já os músicos haviam começado. Blusa preta a envolver grande
gargantilha prateada; saia branca plissada, faixa preta e luvas pretas também,
com brilhantes. No primeiro fado, assim à maneira antiga, aquelas histórias de
ciúmes; o segundo teve letra de Zé Carlos Malato «Tenho medo de dormir»; a concluir,
«Lisboa à noite», naturalmente acompanhado pelo público, como ia acontecendo
com todos.
Após
o intervalo, a palavra ao fundador, Hunter Halder, que incitou todos e cada um
a juntarem-se a esta campanha: 2 horas por semana dão para alimentar 10
pessoas! E manifestou gratidão por todo o apoio que a Rǝfood tem recebido.
Ana
Lains, 39 anos, de preto e faixa vermelha, foi acompanhada ao piano pelo
marido. «Por te ver eu choro agora»; Senhora do Almortão (com adufe, uma
interpretação muito pessoal, magnífica, com arranjo do marido); terminou com um
fado menor, onde confessava, a dado passo: «Não sei bem se inda te quero».
A
jovem Tânia Oleiro, calças pretas, blusa negra brilhante, professora de Matemática,
ouvia a mãe cantar e deixou-se enfeitiçar. «A minha alma a soluçar as mágoas
que vou cantando»; o primeiro fado que aprendeu, as cerejas que a mãe lhe punha
como brincos. Está feliz em Cascais, evoca Manuel de Almeida, canta de olhos semicerrados
«com a mais sentida dor».
Rodrigo
Costa Félix, 47 anos completados no dia 20 de Fevereiro, calças de ganga azuis,
camisa branca, casaco casual, de olhos semicerrados também, enlevado no que
canta. «Agora que te não quero / Vejo as figuras que fiz»; «Não digas nada, amor,
não digas nada / Não quero ouvir sequer a tua voz / Que a tua voz, amor, ficou
gravada / Nesse mero acaso que fomos nós». «Lisboa, menina e moça», a concluir
– com o publico.
Maria
Ana Bobone, fato-macaco preto, casaquinho da mesma cor, cabelos lisos sobre o
peito. Sentou-se ao piano. «Que Deus me perdoe»: “Se a minh'alma fechada /se
pudesse mostrar / e o que eu sofro calada / se pudesse contar”. Era para ser só
ao piano, mas o guitarra e o viola não resistiram e, como quem não quer a
coisa, devagarinho, entraram e foram sucesso também! Momento de encantar! Foi
depois a história do namorico entre a Rita que é peixeira e o Chico que é
pescador. Por fim, «Ó noite de Santo António!» – e toca a marchar!
Pedro
Moutinho lançou nestes dias o «Um Fado ao Contrário». Natural de Oeiras, onde nasceu
a 11 de Novembro de 1976. «Têm a cor do ciúme / Eternos como o perfume / à
praia não volto mais». Depois: «Naquela noite sem lua / Entrei pela tua rua /
em sentido proibido». No fim, com a assistência, “Bairro Alto aos seus amores
tão dedicado».
Maria
João Quadros, bem à fadista, de xaile e arrecadas. Em «Quem por amor se perdeu»
até pasmou com o requinte do acompanhamento com que os músicos a brindaram! «Ó
meu amor, nunca te esqueças de mim / O meu coração esmorece e bem padece longe
de ti». E, a terminar, a evocação da Lisboa boémia e fadista, da velha
tendinha…
A Comissão Organizadora e os músicos |
…
No final, o grupo dos colaboradores |
O agradecimento |
Se
um ramo de flores premiou cada um dos cantores, no final da tarde, era já
noite, as 19 horas estavam quase a bater, a Comissão Organizadora veio ao palco
agradecer a todos os que tão brilhantemente haviam trabalhado para que o êxito
da sessão tivesse sido tão grande. E ao público pelo calor dos aplausos jamais regateados.
Cá
fora, a aragem bem fresquinha teve muita dificuldade em nos roubar o forte aconchego
sentido…
José
d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição
de 7-3-2019: http://www.cyberjornal.net/saude-e-solidariedade/saude-e-solidariedade/solidariedade/aquele-abraco-cascalense
Quando as pessoas se juntam por causas mais que justas e a boa música engrandece as boas obras, só podem acontecer momentos mágicos como os que tão bem descreve.
ResponderEliminarBem haja por partilhar connosco esses momentos e as suas emoções.
Um abraço
M.V.P.